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Sentindo-se perseguido pela Receita Federal, Ministro Gilmar Mendes diz que instituições e Lava-Jato estão contaminadas

Investigado pelo órgão tributário, o ministro do STF acha que as instituições acobertam “milícias” e acusa um procurador da operação de querer incriminá-lo

Por volta das 10 horas da terça-feira, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), voltava de sua faculdade, o Instituto Brasileiro de Direito Público (IDP), em Brasília, onde havia dado uma palestra de ambientação para os calouros. Fazia calor, ele usava terno escuro e estava perfumado. Desceu do carro preto blindado em companhia de dois seguranças e foi recebido no quintal de sua casa por outros três, que usavam coletes à prova de bala e estavam armados. A propriedade, que fica no Setor de Mansões, à beira do Lago Paranoá, poderia passar por um clube, a contar pela piscina, com uma onça preta de cerâmica bebendo água e uma edícula cheia de boias coloridas em formato de macarrão. Ou por uma fazenda urbana, com uma vista espetacular da cidade, árvores frutíferas, viveiros, patos, galinhas, cachorros, gatos, emas e até um pônei.

Mendes se servia de café quando sua mulher, a advogada Guiomar Feitosa, sócia do escritório de advocacia Sérgio Bermudes, um dos maiores do país, surgiu na varanda da casa seguida por uma trupe de três cachorrinhos.

Na semana anterior, tornara-se pública uma investigação da Receita Federal sobre o casal. Era a primeira vez na história que um magistrado da mais alta Corte do país sofria tal escrutínio. A justificativa do Fisco para devassar as contas do ministro era uma “análise de interesse fiscal” para investigar possíveis fraudes de “corrupção, lavagem de dinheiro, ocultação de patrimônio ou tráfico de influência”. A suspeita levantada envolveria o IDP, os honorários advocatícios dela e um suposto favorecimento dele no julgamento de processos na Corte. O Imposto de Renda de ambos vazou, e 18 pessoas, entre parentes e conhecidos, foram listadas como potenciais investigados no caso. O trabalho era tocado pelo auditor Luciano Castro, que é lotado em Vitória, onde o casal Mendes não tem negócios ou propriedades.

“Sou alvo de ataques desde que cheguei ao STF, há 17 anos”, disse Gilmar Mendes, bebericando o café. Mas, para ele, essa última ofensiva havia passado de todos os limites. Primeiro, eram os “ex-colegas do Ministério Público”, depois a Polícia Federal e, agora, a Receita. Em tom indignado, ele atribuiu o fato a seus posicionamentos críticos ao que considera excessos ilegais. Um dos casos que disse ser emblemático da arbitrariedade que denuncia foi a prisão do banqueiro André Esteves, que foi preso e cujo caso não chegou a nenhum lugar. “Ele ficou meses preso e, depois, não tiveram coragem de dizer claramente que era um erro. Disseram apenas que não encontraram provas. Absurdo.”

Não fossem seus enfrentamentos, disse, a PF já teria se “assentado como um Poder em si”. E passou a discorrer sobre inúmeros casos em que atuou como, de acordo com ele, voz contrária a interesses diversos. Teria sido assim durante a Operação Satiagraha, quando soltou o banqueiro Daniel Dantas (“Aquilo foi uma guerra comercial para ferrar o Daniel Dantas, com os interesses da Telecom Itália e outras. Era um jogo de poder e só”). Depois, no caso da investigação da Gautama, quando a PF divulgou “propositalmente” o nome de um dos envolvidos — que era seu homônimo — apenas para envolvê-lo. Citou o procurador Luiz Francisco de Souza como alguém que teria uma missão de atingi-lo e o ex-delegado Protógenes Queiroz, posteriormente expulso da corporação, que também havia colocado em suspeição sua isenção. “Quando todos vocês lambiam as botas do PT, eu era voz única a ser contra”, disse em alusão a como não se furtava a enfrentar polêmicas.

De longe, sentada a uma mesa ainda posta para o café da manhã, Guiomar dava sua versão sobre o caso. Disse que nunca teve problemas com a Receita, que era de família rica, que tem tudo declarado, que a investigação era um absurdo. Dias antes, a revista eletrônica Crusoé havia publicado um levantamento do que seriam os bens do casal. Totalizariam coisa de R$ 20 milhões, entre imóveis e bens espalhados pelo país. “Somos casados em separação total de bens. Se eu soubesse que ela era tão rica, eu teria parado de dividir as contas”, ironizou o ministro. De sua parte, ela parecia indignada. “Estão criminalizando empréstimo de banco”, reclamou.

Gil e Guio, como eles se tratam, são casados há 12 anos e namoram há quase 20. Ele de Diamantino, Mato Grosso, ela de Fortaleza, Ceará, foram colegas de sala na Universidade de Brasília. De uma família cearense de empresários de ônibus, Guiomar era apaixonada por ele. Só foram de fato casar-se em 2007, quando ela trabalhava no gabinete de Marco Aurélio Mello e foram reaproximados pelas mãos de Cármen Lúcia.

Orgulham-se de dizer que são casados com uma separação de bens “tão rigorosa” que racham até presentes para amigos. A exceção foi um apartamento em Portugal, que os dois compraram em 2016 pagando metade com dinheiro próprio e a outra metade com um empréstimo obtido no banco Santander.

O ministro prosseguiu. “Agora estamos vendo a desinstitucionalização da Receita.” Em tom grave, começou a falar sobre o que acha ser uma disseminação de “milícias” em setores da administração pública brasileira, a Receita incluída. Segundo ele, grupos com interesses distintos abusam da autoridade para conseguir vantagens, provar teses estapafúrdias ou mesmo extorquir. Com os papéis do Fisco em mãos, disse: “Coisa como isso aqui, para começar a venda de informações, para virar uma milícia, é um passo. Tenho certeza de que já há muitos empresários sendo achacados por fiscais que tocam investigações, que não se sabe por que nem para quê”.

Mendes tomou conhecimento da investigação em novembro, quando chegou ao IDP uma notificação da Receita pedindo explicações para dúvidas tributárias do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). “Quando fui ver, o número do processo no Carf era de uma borracharia no Acre”, contou. “Nada tinha a ver com o IDP.” Resolveu ligar para o então secretário da Receita, Jorge Rachid. Segundo Mendes, Rachid lhe teria dito que o auditor responsável pelo caso, Luciano Castro, estava prestando serviços à Operação Calicute, do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro e responsável por prender, entre outros, Sérgio Cabral e Jacob Barata, o Rei do Ônibus, de cuja filha Mendes e Guiomar foram padrinhos de casamento. “A partir daí, decodificou para mim a ação, já que eu havia atuado nos processos da Calicute.” Para Mendes, não havia mais dúvida: haviam fraudado a autuação apenas para chegar ao IDP.

Jacob Barata, que é acusado de pagar R$ 260 milhões em propina para políticos fluminenses, foi solto por Mendes em três ocasiões. O argumento do ministro era que a urgência da prisão do empresário não se justificava e que a defesa não havia sido ouvida como manda a lei. Quando é perguntado sobre sua relação com Barata e a suposta suspeição para apreciar o caso, Mendes tem um discurso afinado. Disse que o conhece superficialmente, que foi apenas ao casamento, nunca se frequentaram e que isso não é um impedimento para apreciar o processo.

O duelo de Mendes com os procuradores da Calicute começou na prisão de Eike Batista, solto por decisão liminar do ministro, e se estende desde então. Os procuradores do Rio de Janeiro pediram que o STF tirasse Mendes dos casos de Batista — alegando que o escritório Bermudes o defendia — e de Jacob Barata — pelo apadrinhamento do casamento de sua filha. O caso abalou até a relação dos procuradores do Rio de Janeiro com Raquel Dodge, que chegou à PGR com o apoio de Mendes.

De lá para cá, o ministro já soltou, seja por decisão liminar, seja pela confirmação de sua decisão pelos demais ministros da Segunda Turma do STF, cerca de 40 pessoas presas pelo juiz Marcelo Bretas e pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região. “A Calicute prende, e o Mendes solta, a Calicute prende e o Mendes solta. Tem a ver com isso”, disse Mendes. “É isso que é o problema.”

Perguntado se a fama de libertar criminosos em série não era horrível, ele disse: “Sim, mas eu não vou abrir mão das minhas convicções e entendimentos sobre a lei para agradar um ou outro”. E emendou o raciocínio lembrando que todas as suas liminares soltando quem a Lava Jato do Rio de Janeiro prende são acompanhadas pela maioria do STF. Os integrantes da Operação Calicute não quiseram comentar as declarações do ministro.

“Quem fiscaliza? Pois é, quem fiscaliza?”, disse Mendes sobre o que acha serem abusos das investigações. Segundo ele, no passado, o ex-secretário Everardo Maciel havia criado um mecanismo para controlar a corrupção na Receita. “Quando um fiscal ia a uma empresa, a central sabia, tinha de avisar o superior ou o grupo”, contou. “Hoje, quem está fiscalizando isso? Eles estão acoplados a essas forças-tarefas. E aí a questão é grave”. E lembrou: “A investigação é de Vitória, gente, Vi-tó-ria! É mais um sintoma dessa desinstitucionalização”.

Há duas semanas, quando procurado pela revista Veja para comentar a investigação que havia contra ele, Mendes telefonou para o secretário da Receita, Marcos Cintra, e para Marcelo Guaranys, secretário executivo do Ministério da Economia, para reclamar do vazamento. Também pediu a José Dias Toffoli, presidente do STF, que solicitasse uma investigação em nome do Supremo. Disse a Cintra que a Receita vive a mesma situação de Ernesto Geisel, com a insubordinação do Segundo Exército, durante a ditadura militar.

Quando foi perguntado se acredita que possa ser alvo do que está sendo chamado de CPI da Lava Toga, um pedido da Rede para investigar o Judiciário, ele fez uma careta. “Não. Tenho uma vida financeira à prova de bala. Do contrário, não seria quem sou.” E reiterou que o fruto de seu trabalho nada tinha a ver com “nenhuma operação maluca”. “É dando aula, vendendo livro, é isso.”

A funcionária trouxe mais uma garrafa de café. A conversa seguia e Guiomar, ainda de longe, falou mais uma vez: “É um processo de desconstrução! Desconstrução! Querem desconstruir o ministro! Isso tem objetivo! É por causa da segunda instância”, disse. Ela se referia à votação no STF do cumprimento imediato da ordem prisão após a condenação em segunda instância — uma questão de honra para os procuradores porque, na visão deles, reduziria a impunidade. A opinião de Mendes é contrária. Ele entende que uma defesa mais ampla é o que determina a Constituição.

Mendes chamou um dos seguranças e pediu que ele imprimisse mais documentos. Lendo o que tinha em mãos, explicou que a Receita quer fazer uma comparação dos honorários de Guiomar com os processos em que ela atuou, debochando em seguida do entendimento dos auditores sobre como é a remuneração de uma advogada que chefia em Brasília um escritório do tamanho do de Bermudes. “A Receita está sendo usada como órgão de pistolagem de outras instituições.” Durante a conversa, ele ainda usou a palavra “consórcio”, “aliança” e “bando” para se referir a parte dos auditores. Na maior parte do tempo, usou apenas o pronome “eles”.

Ao lhe ser pedido para nomear quem seriam “eles”, foi lacônico. “Eles, esse sujeito indeterminado, é uma combinação. São pessoas vinculadas a essas operações. Usam uma linguagem de arapongas no documento da Receita”, disse. Da mesa ao fundo, onde mexia no celular, Guiomar o interrompeu delicadamente. Mais uma vez, citou um fato que denotaria perseguição ao casal. Quando das investigações da Operação Calicute, a Receita teria oficiado uma das empresas de Eike Batista pedindo uma relação dos advogados que a atendia. O objetivo seria pegá-la. “Não tem outra razão”, disse.

Aproximava-se a hora do almoço e podia-se sentir o cheiro de comida boa fritando na panela. Mendes se ajeitou na cadeira como se fosse começar uma explanação em plenário. E passou a discorrer sobre o que considera o principal indicativo de que seria alvo de um processo de perseguição sem precedentes.

Uma semana antes, contou, fora procurado por seu sócio no IDP em São Paulo, Luiz Junqueira, que lhe revelou ter sido contatado por um advogado da empreiteira Triunfo, concessionária de pedágio no Paraná e uma das últimas a ser tragada pela espiral da Lava Jato. Mendes ficou sabendo que o advogado Tracy Reinaldet, que negociava a delação dos empresários da construtora, teria ouvido um pedido do procurador Diogo Castor, integrante da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba.

Segundo o relato de Reinaldet ao advogado da Triunfo, Castor teria apresentado uma condição para o acordo de colaboração. “Ele exigiu que meu nome viesse na delação. O meu e o do desembargador Thompson Flores”, disse Mendes, referindo-se ao presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Dois dias depois, contou Mendes, ouviu a mesma história de um amigo de Brasília que é sócio de uma empresa de construção.

Mendes afirmou não conhecer os donos da Triunfo, lembrou apenas ter dado um habeas corpus para um deles, mas recordou detalhes sobre Castor, cujo nome afirma ter ouvido de “vários advogados”, que lhe teriam contado que as delações em Curitiba passam “direta ou indiretamente” pelo escritório do irmão do procurador, Rodrigo Castor. Em abril de 2018, muito tempo antes de saber do caso da Triunfo, Mendes já havia levantado suspeitas sobre Castor, o procurador, no plenário do STF.

Na quarta-feira de manhã, Mendes telefonou para ÉPOCA e contou que falara formalmente sobre o episódio com José Dias Toffoli e Raquel Dodge. Os dois teriam ficado perplexos. “A Raquel está acuada pelos apoiadores do Sergio Moro lá na PGR, coitada”, afirmou. À noite, a queixa foi formalmente apresentada por Mendes a Toffoli.

Em Curitiba, Diogo Castor afirmou, por meio da assessoria de imprensa do MPF, que a força-tarefa “jamais condicionou a realização de acordos de colaboração premiada à menção de qualquer agente público, político ou privado, mas sim ao esclarecimento da verdade sobre fatos”. “A suposta informação de que algum acordo teria sido condicionado à revelação de crimes do ministro Gilmar Mendes ou de qualquer outra pessoa se trata de mais um ataque infundado contra a Lava Jato e a sua difusão pelo referido ministro corrobora a falta da imparcialidade necessária para a sua atuação em investigações e processos relacionados à operação”, afirmou Castor em nota.

“Sobre a outra declaração (a respeito de delações passarem pelo escritório do irmão), não é algo novo. Isso já foi feito em 2017 e, no ano passado, durante uma sessão do STF, o ministro já tinha falado isso, sem provas”, completou. O advogado Tracy Reinaldet afirmou não ser advogado da Triunfo e tampouco ter ouvido do MPF a exigência de falar sobre determinado fato ou de determinada pessoa. A Receita Federal, o ex-secretário Jorge Rachid e a Triunfo não responderam aos questionamentos de ÉPOCA.

A conversa se estendia por mais de duas horas. Sem querer comentar o governo Bolsonaro ou a gestão de Sergio Moro, Mendes voltou a reclamar do que acha ser uma arbitrariedade da investigação do Fisco. “Botaram minha mãe, que morreu em 2007, botaram a Samantha, minha ex-mulher, porque ela foi nomeada para um cargo na Itaipu. Quando a gente tem amigos na política, a gente sofre isso. Ela foi nomeada pelo Temer porque ela foi do escritório do Celso Bastos, do qual o Temer foi sócio, portanto ele a conhecia. Nada tem a ver comigo. Botaram um primo, nomeado recentemente para diretor da Antaq. Sem dedo meu, veio da política de Mato Grosso”, disse. E depois debochou: “This is esculhambation!”.

Gilmar Mendes tinha um cachorro peludo dourado deitado a seus pés. O calor aumentara, e a tez do ministro estava salpicada de bolhinhas de suor. Quando foi perguntado por que ele seria o único alvo do que chamou de “milícias“ institucionais, baixou o tom de voz e disse que não era o único. Segundo ele, há um ministro do STF sendo chantageado por uma das grandes operações investigativas em curso no país. “A toda hora plantavam e plantaram que esse ministro estava delatado. Qual a intenção? Isso é uma forma de atemorizar, porque essa gente perdeu o limite. Este ministro ficou refém deles”, disse.

Um dos celulares dos presentes apitou dando conta de uma notícia que acabara de ser publicada pelo UOL: “Lava Jato tenta driblar Gilmar Mendes ao levar Paulo Preto para Curitiba”. O texto lembrava que a investigação anterior sobre o ex-diretor da Dersa Paulo Vieira de Souza, cujo relator era Mendes, havia sido interrompida por ordem do ministro e enviada para a Justiça Eleitoral em São Paulo. Ele também soltara Paulo Preto. Agora, com a conexão encontrada pela Lava Jato em Curitiba com ex-diretores da Petrobras, o caso seguiria sob a relatoria de Edson Fachin, com entendimentos mais próximos aos do MPF.

O ministro ouvia a leitura do texto com uma expressão impassível, limitando-se a lembrar de uma conversa que teve no passado com José Serra. “O Serra me contou certa vez que só esteve três vezes com esse Paulo Preto, mal conhece.” Deltan Dallagnol, chefe da Lava Jato em Curitiba, havia comentado no Twitter sobre o risco de Gilmar voltar a soltar Paulo Preto. “O Deltan adora o Twitter”, completou Guiomar, da varanda. Eles se preparavam para almoçar. Mendes teria de estar no tribunal dali a uma hora. Antes de se despedir, com as folhas da denúncia da Receita nas mãos, ele elevou o tom de voz balançando as cópias xerocadas. “Isso aqui é a Gestapo com a KGB, mas feito pelas Organizações Tabajara!”

FONTE: EPOCA

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Marcio Martins martins

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