Há menos de duas semanas, um grupo pessoas, homens e mulheres, alguns deles idosos com gorros de lã, reuniu-se à volta de um ‘laptop’ para ver uma cerimónia que ia realizar-se a 1.500 quilómetros de distância e mudar totalmente as suas vidas. Nesse instante, o presidente russo, Vladimir Putin, assinava o tratado de anexação da Crimeia na sua residência oficial, o Grande Palácio do Kremlin.
Com uma simples assinatura, Putin reclamou para a Rússia uma península que foi parte integrante da Ucrânia desde a sua independência, em 1991, na sequência da queda da União Soviética, provocando o maior abalo de que há memória nas relações Leste-Oeste desde o fim da guerra fria. A Ucrânia, a Europa e os EUA condenaram a decisão e aprovaram sanções para penalizar o país, que entretanto ficou mais isolado diplomaticamente.
Nas ruas da capital da Crimeia, Simferopol, o ambiente era de euforia. Noutras zonas da região, o contraste não podia ser maior. A decepção dos tártaros da Crimeia, uma das principais minorias étnicas e habitantes originários da península, era gritante, ou não fosse a Rússia um país que a comunidade associa a deportações em massa, discriminação e crueldade. “Não esperamos nada de bom da Rússia. É como tivéssemos uma memória genética”, diz Arzy Selimova, responsável pela programação de um canal de televisão estatal da Crimeia.
A anexação foi o corolário de um mês intenso: a queda do governo do ex-presidente ucraniano Viktor Yanukovich, a 22 de Fevereiro, foi seguida da chegada de tropas especiais russas à região, que assumiram o controlo da mesma até à realização de um referendo sobre a integração da península na Rússia, promovido pelos novos líderes pró-Moscovo. Dois dias depois de o “sim” vencer com 97% dos votos, Putin proclamou a Crimeia e a cidade de Sevastopol a 84ª e 85ª regiões da Federação Russa.
Apesar de a Crimeia ter passado o último mês mergulhada num clima de desconfiança, pânico e patriotismo, que por vezes chegou a roçar a histeria, a verdade é que grande parte da península – que já ajustou o relógio à hora de Moscovo e passou a ter o rublo como moeda – nutre um sentimento genuinamente patriótico para com a Rússia.
Um território cobiçado
O Museu da Frota do Mar Negro no centro de Sevastopol representa uma das muitas ligações emocionais da Rússia à Crimeia desde que Catarina, a Grande a resgatou ao Império Otomano, em 1783. “Sevastopol é o orgulho da marinha russa e de toda a nação russa. É como se nos tivessem cortado a ponta do dedo. O nosso desejo é que volte a estar intacto”, realça Liudmila, a guia turística que mostra o museu a um grupo de jovens oficiais da marinha russa.
A região ainda hoje presta homenagem às dezenas de milhar de soldados mortos durante a Guerra da Crimeia de 1853/56 e o cerco nazi de 1941/42. Apesar de tudo, o amor pela Rússia não é universal. Os tártaros da Crimeia, cerca de 13% da população, desconfiam de Moscovo desde que Estaline os mandou deportar para a Ásia Central, em 1944, alegadamente por terem colaborado com a Alemanha nazi.
As suas casas foram ocupadas por novos colonos vindos do Leste. Em breve a Crimeia passou a ter uma população maioritariamente russa, mas isso não impediu Nikita Khrushchev de oferecer o território à república soviética da Ucrânia em 1954. Quatro décadas depois, o mundo assiste à queda da União Soviética, em 1991. Em Dezembro desse ano realizou-se um referendo, no qual q maior parte da população votou a favor da independência. No final da década de 1990, os apoiantes da reintegração na Rússia não chegavam sequer a 25%, percentagem bastante baixa tendo em conta que a etnia russa representava 60% da população.
Enquadrada por montanhas, com um clima subtropical e praias banhadas pelo Mar Negro, a Crimeia era o destino de veraneio preferido dos soviéticos. O turismo permitiu-lhe sobreviver às crises económicas no pós-URSS, mas o encerramento de muitas fábricas fez disparar o desemprego e aumentar o descontentamento entre a população, que cada vez mais se sentia explorada pelo governo central. Do outro lado estavam os que viam nesta opinião um profundo saudosismo do passado soviético. “Querem regressar ao tempo em que as salsichas custavam 2,20 rublos o quilo e querem que decidam tudo por eles. Encaram a liberdade como um fardo insuportável”, frisa Alime Apselyamova, professora de ciência política em Simferopol.
O regresso da Crimeia à Rússia
A Crimeia transformou-se rapidamente numa pequena versão da Rússia de Vladimir Putin. Ou seja, bastaram duas semanas para esmagar a oposição política, amordaçar a sociedade civil, acicatar as tensões étnicas e tornar a península num bastião do poder militar russo. Nos dias subsequentes à invasão, os principais canais de televisão ucranianos foram encerrados e substituídos por veículos de propaganda anti-Kiev e pró-Moscovo.
A campanha não deixou margem para nuances. Não havia sequer a oportunidade de votar “Não”. Os eleitores tinham de escolher entre a integração na Rússia ou a independência da Ucrânia. Viam-se cartazes em todas as cidades da região apelando ao voto na reunificação. Um deles exibia dois mapas da Crimeia: o da esquerda tinha a suástica nazi, o da direita as cores da bandeira russa.
No dia do referendo, as divisões permaneciam. Nas ruas de Sevastopol ouviam-se canções patrióticas soviéticas, enquanto as rádios locais passavam temas de clássicos da comédia soviética. “Estou farta de viver como vivemos. Não passamos de uma espécie de apêndice da Ucrânia”, desabafa Natalya Stepakova, doméstica de meia-idade.
Em Bakhchisaray, bastião tártaro, o sentimento é outro. “Os russos não querem saber da Crimeia para nada. Só lhes interessa como base militar. Vão passar a controlar tudo e acabar com a liberdade de expressão”, comenta Rustem Memedeminov, dona de uma banca de fruta no mercado New Style.
Nessa noite ficou claro que a maioria votara na reunificação. Em Simferopol, a multidão convergiu para a praça central agitando bandeiras russas e soviéticas para ouvir o coro da Frota do Mar Negro entoar músicas patrióticas.
O futuro é uma incógnita
Dois dias depois, quando a Rússia anunciou a anexação da Crimeia, as celebrações ficaram manchadas pelas primeiras baixas: dois homens foram mortos numa base militar nos arredores de Simferopol, aquando da chegada das forças pró-russas. No dia seguinte, o quartel-general da marinha ucraniana em Sevastopol foi tomado de assalto por tropas russas que se apressaram a hastear a bandeira tricolor para mostrar quem manda.
As consequências económicas da nova realidade serão, contudo, o maior desafio no imediato. Alguns comerciantes mostram-se preocupados com o futuro da região e a sua dependência da Ucrânia. “A Crimeia vai ser alvo de um bloqueio económico por parte de Kiev, que pode deixar-nos sem electricidade e água fresca”, lembra Ibrahim Zinedin, comerciante tártaro que vende materiais para a construção civil.
As opiniões sobre o futuro dividem-se. Em Alushta, Liudmila, uma ucraniana que vende lembranças aos turistas, receia que a integração na Rússia possa separá-la dos seus filhos: um vive em Kiev, outro em Odessa. Para Aishe Osmanova, de etnia tártara e contabilista num restaurante local, o que mais a preocupa é uma nova vaga de repressão: “Os ucranianos se quiserem podem ir-se embora, mas nós não temos para onde ir”.
Vitaly, 56 anos, capitão da marinha ucraniana na reforma, nasceu na Crimeia e recusa-se a participar nas celebrações. “Os russos habituaram-se a viver como escravos e Putin é o seu Czar”. Larisa Anatolyevna, dona de uma livraria em Sevastopol e descendente de oficiais da marinha russa, confessa-se emocionada com a reintegração na Rússia: “Desatei num pranto quando vi os cartazes a anunciar o regresso à mãe pátria”.
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