Relatório do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) aponta as maiores dificuldades dos familiares de pessoas desaparecidas
“O desaparecimento da minha filha realmente mudou a nossa vida. Porque ele remete a uma situação que você não consegue pensar, não consegue achar solução. A única coisa que você pensa é achar o mais rápido possível.”
Esse é o relato de Vera Lúcia Ranú, mãe de Fabiana Renata Gonçalves, que desapareceu no dia 12 de novembro de 1992, no bairro Jaraguá, em São Paulo.
Fabiana tinha 13 anos quando foi para a escola e nunca mais voltou para casa. Na época, para registrar boletim de ocorrência de desaparecimento era necessário aguardar um período de 72h, e Vera Lúcia só conseguiu fazer o registro após 100h do sumiço da filha. Nesse período, ela e a família procuraram Fabiana por hospitais, IML, vizinhança e na casa de amigos, mas não obtiveram resultado. Neste ano completa 29 anos do sumiço de Fabiana.
Vera Lúcia relata que na época não houve êxito na investigação por parte da polícia, pois não existia vestígios por onde começar as buscas e precisou se ausentar do trabalho. Além das mudanças no cotidiano, o sumiço da filha impactou toda a família.
“Eu tive vários problemas de saúde, principalmente psicológicos, e os meus filhos também. Como eram muito pequenos eles não entendiam por que a irmã tinha saído do convívio social deles e a todo momento queriam saber onde ela estava, eles não entendiam a situação. Recorri a um tratamento psicossocial para as crianças poderem superar essa situação”, relata Vera Lúcia.
Uma das situações mais difíceis para ela e o marido foi lidar com diversas pistas falsas sobre o paradeiro de Fabiana, o que resultou em gastos maiores com investigação particular e viagens. “O desaparecimento de um filho é um sentimento confuso, por um lado a gente tem esperança, por outro lado, de repente, também vem a desesperança. Eu costumo dizer que quem tem um filho desaparecido não vive mais, ele simplesmente sobrevive o dia a dia para continuar na busca.”
“A meu ver o desaparecimento é uma sepultura sem túmulo. Porque quando a gente enterra um familiar existe uma sepultura que você chora e visita nos momentos que sente saudades. O desaparecimento fica marcado naquele dia que você se vê com a falta da pessoa e busca dia após dia, ano após ano.”
Vera Lúcia Ranú, fundadora e presidente da ONG Mães em Luta.
Logo nos primeiros anos do desaparecimento da filha, Vera Lúcia fundou, junto com uma amiga, que também teve a filha desaparecida, a ONG Mães da Sé, uma das maiores organizações do Brasil para a busca de pessoas desaparecidas. “Foi um marco no nosso país, porque ninguém falava sobre desaparecimento, principalmente de crianças e adolescentes”, conta Vera Lúcia.
As manifestações da Mães da Sé tiveram início com um protesto silencioso no qual os familiares de pessoas desaparecidas se reuniram na escadaria da Praça da Sé, em São Paulo, segurando fotos na esperança de que alguém as visse e pudesse ter alguma notícia das pessoas ali divulgadas. Atualmente os protestos ainda acontecem da mesma forma.
Em 2005 Vera Lúcia fundou outra organização voltada a pessoas desaparecidas, a Mães em Luta, que trabalha com a prevenção nas comunidades e escolas por meio de palestras com familiares e jovens sobre as principais causas do desaparecimento. A ONG busca junto às autoridades de políticas públicas mais eficazes na busca de pessoas desaparecidas. A Mães em Luta e Mães da Sé já localizaram mais de dez mil pessoas no Brasil.
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021, existem 62.857 pessoas desaparecidas no país, sendo 172 casos por dia. Entretanto, houve uma queda de 21,6% entre 2019 e 2020. São Paulo possui 18.342 pessoas desaparecidas, sendo o estado com a maior quantidade, seguido por Minas Gerais (6.835) e Rio Grande do Sul (6.202).
Conforme informou o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), São Paulo é o estado do Brasil que tem reportado o maior número de registros de desaparecimento, o que significa que a área tem relevância para entender o fenômeno e representa a diversidade do Brasil. Por isso, a instituição fez um estudo sobre o impacto e as necessidades dos familiares de pessoas desaparecidas que servirá também para orientar os governos a fim de promover projetos e respostas adequadas a essas necessidades.
O relatório intitulado “Ainda? Essa é a palavra que mais dói” foi realizado com 27 famílias do estado paulista que tiveram acompanhamento constante e participaram de entrevistas coletivas e individuais desde 2018. Também foram ouvidos 18 servidores públicos com experiência no atendimento a casos de desaparecimento e seis líderes e colaboradores de associações de familiares de pessoas desaparecidas.
Segundo a coordenadora do programa de pessoas desaparecidas e suas famílias do CICV, Larissa Leite, as consequências do desaparecimento de uma pessoa afeta todas as áreas da vida dos familiares. “Vemos famílias sofrendo a angústia e muitas vezes se jogam em atividades perigosas que acabam tomando todo o tempo de um familiar. Esse, muitas vezes, deixa de trabalhar e acaba ocasionando em um adoecimento mental e um adoecimento físico.”
Quadros de depressão, ansiedade e adoecimento psicossomático são os mais frequentes entre os familiares. Além disso, existe também o impacto na parte econômica, pois as famílias costumam investir tudo o que tem na busca pelo parente que desapareceu e há também consequências de ordem jurídica.
O relatório aponta que entre os problemas de ordem jurídica enfrentados pelos familiares estão o recebimento de boleto de cobrança por um curso que a pessoa desaparecida não havia iniciado; impossibilidade de encerrar a conta bancária da pessoa desaparecida, existindo cobrança de taxas bancárias; manutenção em depósito judicial de valores decorrentes das verbas trabalhistas pagas pela empresa na qual a pessoa desaparecida trabalhava e impossibilidade de transferir para o comprador um veículo registrado em nome da pessoa desaparecida.
O CICV realiza desde 2019 um programa de acompanhamento às famílias de pessoas desaparecidas. A iniciativa, que termina no final deste ano, auxilia cerca de 40 famílias, a maioria participantes da avaliação de necessidades. “Nesse programa de acompanhamento realizamos várias atividades focadas em fortalecer essas famílias para que elas não fiquem paralisadas pela busca e nesse fortalecimento elas passam por atividades psicossociais, passam também por atividades informativas sobre direitos, serviços, atividades que procuram sensibilizar as famílias para o autocuidado e ensiná-las a promoverem entre elas o apoio mútuo”, explica Larissa Leite, da CICV.
A coordenadora destaca ainda que os atendimentos individuais são ofertados. “Realizamos atividades de promoção da memória sobre as pessoas desaparecidas e atividades públicas que podem ser reparadoras, porque as famílias sentem necessidade de que seu sofrimento seja reconhecido socialmente, já que é um sofrimento tão específico e muitas vezes um pouco negligenciado pela sociedade.”
Perfil das pessoas desaparecidas
Segundo o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, ainda não é possível extrair dados que indiquem se existe ou não um perfil preponderante entre as pessoas desaparecidas no Brasil. “Ainda existe uma dificuldade de centralização de informações sobre os registros de desaparecimento e como não conseguimos centralizar e atualizar essas informações, também não conseguimos saber quais são as características dessas pessoas: idade, local de moradia e até as circunstâncias do desaparecimento”, explica Larissa Leite.
A fundadora e presidente da ONG Mães em Luta, Vera Lúcia Ranú, diz que o desaparecimento é um leque de possibilidades muito grandes. “Ele começa com conflitos familiares, passa pela prostituição, adoção ilegal, violência sexual, pedofilia, homossexualismo, tráfico de drogas, enfim, ele é um leque de situações sociais vulneráveis a qual a maioria das pessoas afetadas são as mais carentes, porque são as mais invisíveis, tudo é mais difícil, todo acesso é negado”, diz.
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