Mas antropólogos alertam que, nas entrelinhas, o texto esconde um “esforço para a evangelização” das tribos
Um tema considerado prioritário pelo Poder Executivo promete reacender o debate — e a polêmica — sobre os direitos dos povos indígenas no Brasil. O Projeto de Lei da Câmara (PLC) 119/2015 é uma das 35 matérias que o presidente Jair Bolsonaro quer ver aprovadas pelo Congresso Nacional em 2021.
A proposição altera o Estatuto do Índio (Lei 6.001, de 1973) para “garantir o direito à vida, à saúde e à integridade física” de crianças, adolescentes, mulheres, pessoas com deficiência e idosos indígenas. Mas antropólogos alertam que, nas entrelinhas, o texto esconde um “esforço para a evangelização” das tribos.
A matéria foi apresentada há 14 anos pelo então deputado Henrique Afonso, à época filiado ao PT do Acre. Identificado originalmente como PL 1.057/2007, o texto reafirma “o respeito e o fomento a práticas tradicionais indígenas”. Mas adverte que elas precisam estar “em conformidade com os direitos humanos fundamentais” estabelecidos pela Constituição Federal e por acordos internacionais.
Afonso enumera uma série de “práticas tradicionais nocivas” que, segundo ele, são adotadas em comunidades indígenas “por razões culturais”. Entre elas, o homicídio de recém-nascidos por meio de envenenamento, soterramento, desnutrição e maus-tratos. De acordo com o texto, algumas tribos “atentam contra a vida” de bebês pelo simples fato de serem gêmeos, filhos de mães solteiras ou marcados por sinais de nascença ou deficiências. O mesmo tratamento é dispensado a crianças que não têm o sexo desejado pelo grupo, recém-nascidos “portadores de má-sorte” ou bebês desnutridos, tidos como “frutos de maldição”.
Segundo o projeto, quem souber que uma criança indígena corre o risco de morrer deve comunicar o fato à Fundação Nacional de Saúde (Funasa), à Fundação Nacional do Índio (Funai), ao Conselho Tutelar ou à polícia. A pena por omissão é de um a seis meses de cadeia. Caso os pais ou a tribo “persistam na prática tradicional nociva”, a criança deve ser retirada da família e transferida para um abrigo provisório. Se isso não for possível, o recém-nascido é encaminhado à adoção.
”O Estado brasileiro deve atuar no sentido de amparar todas as crianças, independentemente de origens, gênero, etnia ou idade, como sujeitos de direitos humanos que são. Obviamente, as tradições são reconhecidas, mas não estão legitimadas a justificar violações a direitos humanos. Práticas tradicionais nocivas, que se encontram presentes em diversos grupos sociais e étnicos do nosso país, não podem ser ignoradas e merecem enfrentamento, por mais delicado que seja”, argumenta Henrique Afonso.
O texto original sofreu mudanças na Câmara. Além de crianças, o projeto passou a contemplar adolescentes, mulheres, pessoas com deficiência e idosos. Os deputados incluíram no rol de “práticas que atentam contra a vida” nas comunidades indígenas os crimes de abuso sexual, estupro individual ou coletivo, escravidão, tortura, abandono de vulnerável e violência doméstica — além, é claro, do infanticídio.
De acordo com o projeto, a autoridade que deixar de tomar medidas imediatas para proteger indígenas em situação de risco pode ser responsabilizada, embora o texto não especifique a pena. A versão final aprovada pela Câmara não prevê explicitamente a possibilidade de adoção para crianças submetidas a maus-tratos. Mas mantém a hipótese de retirada provisória e “colocação em lugar seguro, observando as especificidades de cada etnia”. Se o risco for afastado, a autoridade deve “promover o reingresso em suas comunidades de origem sempre que possível”.
Aprovado por duas comissões temáticas e pelo Plenário da Câmara, o projeto chegou ao Senado em setembro de 2015. A matéria recebeu o aval da Comissão de Direitos Humanos (CDH) quatro anos depois, com parecer do senador Telmário Mota (Pros-RR). Desde outubro de 2019, o texto aguarda o relatório do senador Marcos Rogério (DEM-RO) na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Se for aprovado sem mudanças pela Casa, o texto segue para sanção presidencial.
Enterrado vivo
O índio Kakatsa Kamayura se apresenta como “um sobrevivente do infanticídio”. Ele relata que, logo após o parto, a mãe tentou sacrificá-lo porque o pai não o reconhecia como filho. Kamayura foi salvo da morte por uma desconhecida.
— Quando eu estava na barriga da minha mãe, meu pai não me reconheceu como filho legítimo. Minha mãe ficou muito triste. Pela pressão do meu pai, quando eu nasci, ela cavou um buraco e queria me enterrar. Mas uma senhora veio e me levou para a sua casa. Essa senhora me pegou, e eu sobrevivi. Tenho um irmão que foi vítima de infanticídio também. Ele é filho de mãe solteira. Quando nasceu, foi enterrado vivo. Depois de duas horas dentro do buraco, minha mãe o tirou de lá — conta.
Kakatsa Kamayura coordena o projeto Tekonoe, que tem o propósito de “cuidar, salvar e abrigar” crianças sob o risco de infanticídio. Durante uma audiência pública promovida pela CDH em novembro de 2016, ele próprio afirmou ter adotado uma menina que escapou da morte quando recém-nascida.
— Eu tenho uma filha que também é sobrevivente de infanticídio, uma filha linda. Não consegui salvar todas as crianças que nasceram na aldeia e foram mortas. Na nossa cultura, a gente enterra as crianças vivas. Dizem que a criança indígena é diferente da criança dos brancos, porque a criança indígena não tem alma. Mas não é uma pessoa sem alma, como as pessoas falam. Essas coisas falam as pessoas que não conhecem a cultura indígena — explica.
O debate na CDH também contou com a presença da jornalista indígena Sandra Terena. Produtora e diretora do documentário Quebrando o Silêncio, ela afirma que o vídeo “pôs por terra a versão oficial” de que “o infanticídio era uma invenção”.
— O objetivo do filme foi mostrar que muitas mães vêm pedindo apoio e precisam de ajuda para dar uma condição de vida para os seus filhos. Meu avô tinha uma doença de pele que a gente conhece por vitiligo. De todos os netos dele, eu sou a única que tenho essa característica. Entendo que, dependendo do contexto da aldeia em que eu tivesse nascido, eu também poderia ter sido uma vítima do infanticídio — afirma.
Quem também defende o PLC 119/2015 é a advogada Maíra Barreto, doutora em Direitos Humanos pela Universidade de Salamanca, na Espanha. Ela argumenta que a legislação brasileira precisa “passar pelo crivo” dos tratados internacionais. Um deles é a “Convenção sobre os Direitos da Criança”, aprovada pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em 1989 e ratificada pelo Brasil no ano seguinte. Segundo o texto, os estados partes “devem adotar todas as medidas eficazes e adequadas para eliminar práticas tradicionais que sejam prejudiciais à saúde da criança”.
— Não resta dúvida quanto à questão de abolir (o infanticídio). Deve haver um combate por parte do Estado em relação a todas as práticas tradicionais nocivas. As mães indígenas, que também sofrem com essas questões culturais, têm o direito de criar seus filhos. O que eu tenho a mais que essa mãe? Eu não tenho nada. Só o meu local de nascimento é que é diferente do dela. E eu não posso condicionar os direitos das pessoas ao local de nascimento — afirma Maíra Barreto.
O PLC 119/2015 foi inspirado em uma sugestão da organização não governamental Atini — Voz pela Vida. Na justificativa do projeto apresentado à Câmara, o então deputado Henrique Afonso reconhece que o objetivo do texto é “tornar realidade os propósitos da Atini”. Fundada em 2006, a ONG tem como missões “erradicar o infanticídio nas comunidades indígenas” e “defender o direito inalienável à vida”.
Missões religiosas
Embora considerado prioritário pelo presidente Jair Bolsonaro, o projeto não é uma unanimidade. O antropólogo e ex-presidente da Funai Artur Nobre Mendes adota “uma postura bastante crítica” em relação à matéria. Para ele, o texto está apoiado em “uma série de pressupostos falsos”. O principal, segundo o antropólogo, é o viés religioso.
O autor do projeto, deputado Henrique Afonso, foi pastor da Igreja Presbiteriana e integrou a Frente Parlamentar Evangélica da Câmara. A jornalista Sandra Terena, autora do documentário Quebrando o Silêncio, é membro da Igreja Cristã Presbiteriana e chefiou a Secretaria de Igualdade Racial do Ministério da Família. A pasta é comandada por Damares Alves, que foi pastora da Igreja do Evangelho Quadrangular e é ponta de lança da “pauta de costumes” na Esplanada dos Ministérios. A própria Damares foi uma das fundadoras da ONG Atini, que encomendou o projeto de combate ao infanticídio indígena.
— Há uma série de pressupostos falsos que deram origem a esse projeto de lei. Especialmente, ele tem um caráter religioso. Ou seja, parte do esforço de evangelização dos índios por parte de algumas missões religiosas. E decorre daí essa percepção, essa visão que distorce completamente a realidade de vida no meio dos indígenas — argumenta o antropólogo Artur Nobre Mendes.
Para o ex-presidente da Funai, o PLC 119/2015 tem “caráter discriminatório” porque situa o infanticídio como “uma prática única e exclusiva dos povos e das sociedades indígenas”.
— Destaca-se esse grupo social como sendo aquele que pratica, de forma contumaz e corriqueira, o infanticídio, ignorando o restante da sociedade. O infanticídio cometido por alguns grupos, nas raras vezes em que ocorre, diz respeito às reais possibilidades de sobrevivência da criança, da sua possibilidade de se desenvolver como ser social pleno. Essa decisão é algo que causa extrema dor, tristeza e desespero. É possível construir junto a essas comunidades indígenas outras formas e soluções sem agredi-las, sem criminalizá-las — avalia.
A antropóloga Marianna Holanda, doutora em Bioética pela Universidade de Brasília, também é contrária à aprovação do PLC 119/2015. Ela destaca que a matéria não conta com o aval de entidades relevantes, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Abip), o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). De acordo com a antropóloga, os dados sobre infanticídio no Brasil “não são alarmantes”.
— A mortalidade de crianças indígenas se dá, em grande parte, pela dificuldade de assistência à saúde. As principais causas são desnutrição, diarreia, viroses, infecções respiratórias, falta de saneamento básico. Sabemos que pneumonia, diarreia e gastroenterite são doenças facilmente tratáveis, desde que essas crianças tenham acesso às políticas de saúde — avalia.
Para Marianna Holanda, a intenção do PLC 119/2015 é “criminalizar os próprios povos indígenas”. A antropóloga afirma que “uma campanha” iniciada em 2005 tenta passar a impressão de que as tribos brasileiras adotam “tradições culturais nocivas e arcaicas” — e precisam ser punidas por isso.
— A sociedade brasileira, em geral, é profundamente ignorante sobre os povos indígenas, mantendo imagens estereotipadas, caricaturadas e, pior, carregadas de preconceito e discriminação. Segundo o IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística], 165 mil pessoas, ou seja, 20% da população indígena autodeclarada, possuem ao menos uma forma de deficiência: auditiva, visual, motora, mental ou intelectual. Isso nos permite demonstrar que os dados que afirmam que há uma prescrição social para que essas crianças sejam mortas por seus pais e familiares não se sustentam — argumenta.
Doenças tratáveis
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), publicou em setembro do ano passado a última atualização do relatório “Violência Contra os Povos Indígenas”, com dados de 2019. O documento destaca um aumento nos registros de mortalidade de crianças até cinco anos de vida. O número saltou de 591, em 2018, para 825, no ano seguinte.
De acordo com o texto, no entanto, “diversas mortes” ocorreram por doenças tratáveis. “Um total de 114 crianças vieram a óbito por diferentes tipos de pneumonia. Outras 53 morreram por diarreia e gastroenterite de origem infecciosa presumível. O órgão de assistência à saúde registrou também 28 óbitos de crianças por morte sem assistência. Nos estados do Acre e do Mato Grosso do Sul foram registrados cinco óbitos por influenza/gripe”, destaca o documento. Não há no relatório nenhuma referência a “práticas tradicionais” de envenenamento, soterramento, desnutrição ou maus-tratos como a causa mortis daquelas crianças.
No capítulo sobre assassinatos, o relatório indica que houve 113 homicídios de indígenas em 2019. De acordo com a publicação, “os dados oficiais não permitem uma análise mais aprofundada” porque não apresentam “informações detalhadas sobre a faixa etária das vítimas”. No entanto, sempre segundo o Cimi, as mortes estão relacionadas a quatro “circunstâncias” principais: disputa pela demarcação de territórios; combate à exploração madeireira e garimpeira; preconceito e intolerância contra indígenas; e situações como alcoolismo, tráfico de drogas e prostituição. Nenhuma menção a gestação gemelar, sinais de nascença, deficiências físicas ou mentais, “má-sorte” ou “maldição” como motivação para os crimes.
O senador Telmário Mota, relator do PLC 119/2015, é favorável à matéria. No parecer aprovado pela CDH em 2019, o parlamentar afirma que “crenças e práticas tradicionais indígenas ocasionalmente implicam atos lesivos aos direitos fundamentais”. Para ele, o Congresso não pode adiar a decisão sobre a matéria.
— Temos de decidir de uma vez por todas se vamos ficar presos a formas tradicionalistas de pensamento e ação ou se vamos avançar rumo à inclusão de todas as nossas populações. Sem hesitar, afirmamos que a modernização do Brasil requer a extensão do respeito aos direitos humanos a todo local e a todas as vidas brasileiras. E os indígenas são brasileiros — argumenta Telmário.
O senador Paulo Paim (PT-RS), ex-presidente da CDH, lembra que os povos indígenas vêm sendo “violentados física e culturalmente há 500 anos”. Ele defende que o relator da matéria na CCJ, senador Marcos Rogério, “arregimente as lideranças indígenas e as partes interessadas” para discutir a proposta em profundidade.
— Não é o governo ou o Parlamento que devem interferir de cima para baixo nessas questões, sem diálogo e sem nem saber se essas são as reais prioridades dos povos indígenas — pontua.
Em 2015, quando era deputado federal, Marcos Rogério foi o relator em Plenário do projeto aprovado pela Câmara.
— Por mais que alguns argumentem que esta lei é uma intervenção desnecessária na cultura dos povos indígenas, trata-se apenas do cumprimento dos comandos contidos na nossa legislação, que insta o Estado a envidar todos os esforços para a proteção integral da criança. A tolerância em relação a diversidade cultural deve ser norteada pelo respeito aos direitos humanos — disse Marcos Rogério na ocasião.
FONTE: AGÊNCIA BRASIL COM GOVERNO DO ACRE
Add Comment