Casos de agressões, maus-tratos e mortes, como a de Gael, chocam o Brasil. Pandemia pode ter contribuído para subnotificações
A sequência de casos de agressões, violência e mortes de crianças no Brasil chama a atenção para um problema velado, que ocorre dentro do lares, onde deveriam estar protegidas: os maus-tratos. Com a pandemia, as famílias passaram a ficar mais tempo em casa e os casos de violência infantil cresceram.
Em 2020, o Disque 100, serviço do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, registrou 95.247 denúncias contra 86.800 em 2019, quando não havia pandemia. Os números representam uma média de 260 queixas ao dia não só por tortura, agressões físicas e psicológicas, mas também por negligência (a maioria). Por hora, a média é de quase 11 denúncias.
O estado de São Paulo lidera o ranking com 23.870 denúncias, seguido pelo Rio de Janeiro com 12.470 e Minas Gerais, com 12.040.
“Temos tradição de violência na sociedade brasileira. Os números são muito altos. São 243 casos de agressões a crianças por dia registrados pelo Sistema Nacional de Agravos, até 2019. São casos que chegaram ao sistema de saúde e foram notificados pelos hospitais”, afirma o advogado especialista em Direitos Humanos e membro do Instituto Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente, Ariel de Castro Alves.
Um levantamento da Sociedade Brasileira de Pediatria, divulgado em abril, aponta que 71% dos registros (62.537) são decorrentes de violência física, 27% (23.693) de violência psicológica e 3% (2.342) são episódios de tortura.
Cerca de 60% das situações se passaram no ambiente doméstico e grande parte têm como autores pessoas do círculo familiar e de convivência das vítimas.
“A criança e o adolescente não sabem quem procurar e nem sabem se é violência por ser recorrente. Eles precisam confiar em um adulto para relatar e fica ainda mais difícil por estarem submissos aos agressores, que fazem ameaças de desacreditação da criança ou até dão presentes para compensar. A criança tem dificuldade de discernir as situações”, explica o advogado.
Ainda de acordo com a Sociedade Brasileira de Pediatria, 103.149 crianças e adolescentes de até 19 anos morreram vítimas de agressões na última década no Brasil. Entre 2010 e agosto de 2020, foram cerca de 2 mil óbitos de crianças com menos de 4 anos de idade.
O caso mais recente, com repercussão nacional, foi o do menino Gael de Freitas Nunes, de apenas 3 anos. Ele foi encontrado praticamente sem vida no chão da cozinha do apartamento onde morava com a mãe, a irmã de 13 anos e a tia-avó na Bela Vista, área nobre de São Paulo. Ele estava coberto com a toalha de mesa, em meio ao vômito, quando foi localizado por parentes, ao lado da mãe, que está presa preventivamente suspeita do crime.
Ela alega não lembrar do que aconteceu e a defesa pretende entregar laudos que atestam que a mãe teve um surto psicótico. Ela já foi internada quatro vezes. Ao ser localizada, não tinha qualquer reação, parecia catatônica, segundo o relato de um enfermeiro à Record TV.
A tia-avó escutou barulhos fortes de batidas na parede e estilhaços, mas achou que o som era de outro apartamento. A idosa disse que logo depois o menino parou de chorar. Marcas do anel usado pela mãe estavam na criança.
Os pais do menino estão separados e ele disse não ter notado qualquer comportamento estranho da ex-mulher. As últimas palavras do filho a ele foram: “Papai, te amo”.
No Rio de Janeiro, no dia 8 de março, Henry Borel perdeu a vida aos 4 anos. A mãe, Monique Medeiros, e o padrasto, o então vereador Dr. Jairinho, estão presos pelo homicídio, com os agravantes: motivo torpe, impossibilidade de defesa da vítima e crueldade.
Segundo o laudo do IML (Instituto Médico Legal), o menino morreu por causa de uma pancada forte no fígado, que provocou uma hemorragia e matou a criança em poucos minutos. Foram identificadas 23 lesões no corpo e as primeiras agressões teriam começado quatro horas antes da morte.
A mãe também vai responder por omissão em outro episódio de violência ocorrido em 12 de fevereiro, além de prestar falsa informação ao hospital.
Mãe e babá da criança sabiam das agressões. Henry tinha medo de ficar com o padrasto. Mesmo com as mensagens apagadas do celular, fotos que mostravam hematomas foram repassadas pela cuidadora.
O pai de Henry, Leniel Borel, afirmou ter recebido com “tristeza, dor e raiva” a conclusão da investigação da morte do filho e tatuou o rosto da criança para eternizá-lo.
As denúncias são essenciais para que os casos de violência a crianças sejam investigados. As escolas sempre desempenharam um papel importante na identificação de situações suspeitas, mas com o fechamento das unidades de ensino na pandemia, o acompanhamento diário dos alunos foi prejudicado.
“Professores, coordenadores e cuidadores recebem cursos para isso. Entre os sinais estão a mudança de comportamento da criança, queda no desempenho escolar, menos disciplina. Se a criança era agitada e agora está calma, se tem choro repentino, medo de um adulto, passou a urinar na cama, além das lesões. Mas nem toda violência deixa marcas”, exemplifica Ariel de Castro Alves.
Uma vez identificada a agressão ou a ausência do aluno em dias consecutivos sem justificativa, as escolas enviam um ofício ao Conselho Tutelar. Mesmo que em anonimato, profissionais da instituição de ensino também podem fazer denúncias de maus-tratos.
Uma das formas de tentar entender a situação vivida pela criança no ambiente familiar é por meio de conversas, desenhos e atividades lúdicas. Em geral, elas sempre têm alguém em quem confiar seja um dos pais, irmãos, avós e tios.
No fim de janeiro, os moradores do Jardim das Andorinhas, em Campinas, no interior de São Paulo, se revoltaram ao saber que um garoto de 11 anos foi encontrado acorrentado, nu, dentro de um barril.
Os vizinhos já desconfiavam de maus-tratos dos pais em relação à criança. Ele estava preso por correntes pelas mãos e pés e preso dentro de um tonel de tinta. A criança era torturada sem poder chorar e chegou a se alimentar das próprias fezes.
“É só porque eu pegava as coisas para comer sem pedir para a minha mãe e meu pai. Meus irmãos podem pegar as coisas sem pedir, eu não”, disse o garoto à PM quando foi resgatado.
Segundo a polícia, tudo começou a partir de uma denúncia anônima. Ao vasculhar o imóvel, encontraram a criança em um cubículo dentro de um tambor. O menino ficava debaixo de sol, por longos períodos, sem água e alimentação. Estava desidratado e desnutrido. Segundo os agentes, o garoto pesava cerca de 25 kg.
A casa da família foi depredada. Depois de ficar alguns dias internada, a criança foi para um abrigo municipal e os tios mostraram interesse em ficar com a guarda do sobrinho.
O pai, a madrasta e a irmã da vítima foram presos preventivamente por tortura e omissão.
Com a pandemia, os órgãos de proteção à criança tiveram o atendimento prejudicado. Muitos funcionários foram afastados, outros estão em trabalho remoto e as unidades funcionam de forma parcial, o que dificulta a apuração de casos de violência doméstica. Não há como investigar à distância.
“Em vídeo, o agressor pode estar ao lado da criança e a orientando sobre o que dizer. Tem que ser presencial, vide o caso de Campinas [menino no barril] que o Conselho Tutelar fazia acompanhamento por telefone e disse que o caso estava evoluindo bem, mas a criança quase morreu e estava desnutrida”, lembra o advogado especialista em Direitos Humanos.
O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) reúne uma legislação robusta de proteção aos direitos da criança, mas nem sempre é colocado em prática. Ainda há uma estrutura deficitária nos Conselhos Tutelares, em geral não há Centros de Referência à Criança e o serviço é prestado por unidades que já estão sobrecarregadas com outras demandas, como população em situação de rua, idosos e mulheres.
As escolas públicas, segundo a legislação, deveriam ter um assistente social e um psicólogo, o que ainda não é realidade no Brasil. Também não há delegacias especializadas em crianças e adolescentes. Os casos são encaminhados para Delegacias de Defesa da Mulher, que não têm psicólogos de plantão para ouvir os relatos das vítimas por meio da escuta protegida. Com isso, as ocorrências vão para a Justiça, o que retarda o atendimento à criança.
Segundo Ariel de Castro Alves, “tudo isso colabora para a subnotificação de casos de violência à criança. Casos trágicos não acontecem do dia para a noite, há sinais anteriores. O ideal é prevenir que ocorram. Fazer a denúncia para que seja verificada, porque isso vai intimidar o agressor. Depois que a tragédia aconteceu, a denúncia só é importante para punir o responsável”.
Em março, no Distrito Federal, a Polícia Militar resgatou uma criança mantida pelo pai em uma jaula na caçamba de um veículo. O menino de 6 anos foi espancado após uma briga e deixado no carro usado para transportar reciclados.
A criança foi encontrada presa nas grades da caçamba de uma pick-up, na chuva, com marcas de espancamento e, apesar do frio, estava sem blusa.
Em contato com testemunhas, os agentes foram informados que o homem de 31 anos brigou com a mulher, de 27 anos, e depois espancou o filho com um pedaço de fio.
Em seguida, o homem arrastou a criança pelo chão e a deixou no veículo. De acordo com a Polícia Militar, o local em que o garoto estava era sujo e semelhante a uma jaula.
O homem foi preso em flagrante e levado para a carceragem por não ter pago a fiança. O garoto foi entregue a uma tia.
No último dia 4, a pequena cidade de Saudades, em Santa Catarina, tomou conta dos noticiários após o ataque frio de um jovem de 18 anos à creche Pró Infância Aquarela. O crime chocou o município e todo o Brasil. Duas professoras e três crianças morreram. Um bebê de 1 ano e 8 meses sobreviveu, chegou a ficar hospitalizado, mas passa bem.
O suspeito chegou de bicicleta e, com uma catana, espécie de espada ninja, matou os bebês Sarah Luiza Mahle Sehn, de 1 ano e 7 meses, Murilo Massing, de 1 ano e 9 meses, e Anna Bela Fernandes de Barros, de 1 ano e 8 meses.
Outras vítimas foram a professora Keli Adriane Anieceviski, de 30 anos, e a agente educativa Mirla Renner, de 20 anos.
“Muito sangue. É uma cena de terror, de horror. Fiquei muito abalada”, afirmou a secretária de educação Gisela Hermann ao R7.
Após a chacina, o autor tentou suicídio, foi encaminhado a um hospital em Chapecó e teve alta na quarta-feira (12). O acusado está no Presídio Regional de Chapecó e já teve a prisão preventiva decretada pela Justiça. Ele permanece isolado dos demais presos.
Segundo o delegado regional, Ricardo Casagrande, o interrogatório durou cerca de uma hora: “Ele tinha o direito de permanecer em silêncio, mas decidiu responder todas as perguntas”. O conteúdo ainda não foi divulgado. Até o momento, não há uma confirmação do motivo do ataque e já se sabe que o autor não tinha relação com o estabelecimento de ensino.
FONTE: R7.COM
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