Uma lágrima grossa escorreu no rosto branquíssimo da síria Razan. Usando um casaco longo bege e a cabeça coberta por um lenço branco estampado com flores pretas, a mulher bonita, de 33 anos, acabara de voltar da sepultura do marido no Cemitério Islâmico de Guarulhos, na Grande São Paulo.
- O nome do homem era Mohammad. No último dia 21 de janeiro, havia completado 37 anos. Junto com Razan e seus três filhos – dois meninos de 9 e 12 anos e uma menina de 2 anos–, ele chegou ao Brasil em maio do ano passado, com o objetivo de deixar para trás a guerra civil que há três anos atinge seu país natal. Mohammad morreu na sexta-feira (21), em São Paulo, por complicações relacionadas a problemas cardíacos.
Segundo a comunidade árabe na cidade, ele é o primeiro refugiado sírio a morrer no Brasil. Entidades que prestam assistência a essas pessoas, como a Cáritas SP e o Instituto de Migrações e Direitos Humanos, afirmam que esse é o primeiro caso do qual foram notificados.
O sobrenome de Mohammad não vai ser citado nesta reportagem para preservar a família, que teme represália na Síria. Fragilizada, a mulher dele também não quis dar entrevista. A reconstituição da história do refugiado foi feita pelo G1 com base em depoimentos de amigos que o acompanharam em sua estadia de quase um ano no Brasil.
Tortura
Natural de Arbeen, cidade na periferia de Damasco que concentra muitos opositores ao regime do presidente sírio, Bashar al-Assad, Mohammad chegou ao Brasil contando que foi preso e torturado com eletrochoques até quase morrer.
O motivo de sua detenção não ficou claro: um dos entrevistados diz que soldados do Exército de Assad encontraram em seu celular fotos de manifestações antirregime, mas os demais afirmam que ele foi preso aleatoriamente, apenas por morar em um lugar onde há muitos rebeldes.
Dado como morto, Mohammad foi jogado inconsciente em uma vala. Um passante viu que seu corpo se mexia e o levou ao médico, já quase sem pulso. Após 40 dias no hospital, recuperado e com medo de ser capturado novamente, o homem fugiu para a Turquia com a família.
Apesar de alguns amigos de Mohammad no Brasil acreditarem que foi a tortura que provocou seu problema cardíaco, o cardiologista com ascendência libanesa Kalled Reda el Hayek, que o atendeu há alguns meses em São Paulo, afirma que não há relação entre os dois fatos. O médico diz que Mohammad já usava uma válvula artificial no coração antes de ser preso e, ao que tudo indica, ele já nasceu com problemas cardíacos.
Segundo Hayek, o problema é que a prótese do paciente era de má qualidade e acabou infeccionando por vários problemas, como o tabagismo e a má saúde bucal do refugiado sírio.
Noite no Aeroporto de Guarulhos
Mohammad, Razan e os filhos vieram para o Brasil após não terem se adaptado na Turquia. Eles foram orientados, quando chegassem, a procurar uma mesquita em Campinas, no interior de São Paulo.
A primeira noite, a família passou no Aeroporto de Guarulhos. Preocupado e com os pés inchados por causa do problema de saúde, Mohammad não conseguiu dormir. No dia seguinte, Razan e os filhos foram para um hotel nas redondezas e o homem viajou até Campinas, onde foi orientado a voltar à capital.
“Me ligaram de lá dizendo que não tinham como ajudar, e eu disse para enviá-lo para cá”, conta o xeique Mohamad Al Bukai, da Mesquita de Guarulhos. Hoje, a comunidade religiosa abriga cerca de 40 refugiados e acompanha vários outros, mas Mohammad foi um dos primeiros a chegar ao local.
A família dele foi acolhida primeiro na residência de um casal de sírios que mora no Brasil há mais de 30 anos, no Brás, Zona Leste de São Paulo. Os anfitriões cederam o próprio quarto para que os recém-chegados se alojassem durante 40 dias, até que eles se mudaram para um apartamento nas redondezas. Coincidentemente, a dona da casa, que também é natural de Arbeen, é irmã de uma ex-professora que deu aula para Mohammad na infância.
Engenheiro da computação, Mohammad começou a trabalhar em casa, consertando computadores, tablets e celulares. Ele também criou um aparelho que podia ser conectado à TV e sintonizava diversos canais árabes no Brasil – a invenção era vendida à comunidade árabe da cidade por R$ 700. “Ele era muito inteligente”, elogiaram vários conhecidos do refugiado sírio em entrevista ao G1.
(Foto: Gabriel Chaim/G1)
Cirurgia
Fluente em inglês, Mohammad estava empenhado em aprender a falar português. Ele ia com a mulher e a filha pequena a todas as aulas do idioma que acontecem três vezes por semana na Mesquita do Pari, na região central de São Paulo.
O homem era engajado na batalha para conseguir ajuda a seus conterrâneos e participou de três reuniões com a prefeitura sobre a situação dos refugiados sírios na cidade.
Mohammad também era teimoso e evitava ao máximo ir ao médico. Algumas vezes, passou mal na aula de português e chegou a cair desmaiado, mas não aceitava ir ao hospital e queria receber sempre os cuidados em casa – até que sua situação piorou.
Após sofrer um acidente vascular cerebral (AVC) e um infarto, o sírio ficou internado na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, onde foi operado no dia 15 de março. A válvula mecânica no coração foi trocada por uma biológica, que é mais difícil de se infectar, mas ele já estava muito fraco e seus rins pararam de funcionar. Mohammad ainda abriu os olhos em uma ocasião, alguns dias após a cirurgia, e pôde ver Razan. Mas morreu na última sexta-feira, às 6h da manhã.
Resguardo da viúva
Cerca de 70 homens compareceram ao enterro de Mohammad na sexta-feira. Eles ocuparam todas as cadeiras de um lado da sala onde o corpo era velado enrolado em um lençol branco, e alguns tiveram que ficar de pé, por causa da lotação. Do outro lado da sala, Razan era consolada por cinco mulheres. As crianças ficaram com uma amiga da família.
Um xeique fez a celebração religiosa, e os amigos ajudaram a carregar o corpo, cavaram a sepultura e enterraram o morto sob uma chuva fina.
Razan agora terá que ficar 4 meses e 10 dias em período de resguardo – chamado, no Islã, de “iddah”. Nesse intervalo, ela deve permanecer na casa onde morava com o marido, não pode usar roupas bonitas, joias, perfumes ou cosméticos, nem receber propostas de casamento.
O xeique Al Bukai diz que a comunidade vai acompanhar a família para se assegurar de que não lhe falte nada. Segundo uma amiga de Razan, ela deve ficar no Brasil, onde está segura e tem o apoio de amigos.
“O Mohammad veio com essa ideia na cabeça, de construir algo melhor para seus filhos no Brasil. A vida agora continua”, disse a colega.
Add Comment