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Sete em cada 10 acusados de violência sexual têm relação familiar com as vítimas

Em 73,4% dos casos, vítimas são meninas e em 18,6%, meninos. Segundo especialistas, abusadores fazem manipulação psicológica e fingem carência

Uma ligação já no fim da noite interrompeu o trajeto e a vida da babá Rafaela Cristina da Cruz Silva. A fala envergonhada e desolada do outro lado da linha era da filha Juliana Silva*, de 12 anos. “Mãe, depois do que aconteceu nunca mais vou conseguir ser feliz”, disse a menina, por volta das 23 horas do dia 2 de outubro do ano passado. Rafaela pensou, então, em tudo que poderia ter acontecido: assalto, roubo, agressão, estupro. “Só não pensei que o pai dela pudesse estar envolvido.”

Hoje, quase dez meses após a denúncia e apesar de ter conseguido na Justiça uma medida cautelar para proteger a filha, Rafaela ainda convive com as sombras do ex-companheiro. “Abandonei por três ou quatro meses a casa em que vivíamos. Pago transporte para ela ir à escola e as pessoas na vizinhança me ajudam a ficar de olho. Enquanto isso, ele trabalha e joga futebol. Ele tem uma vida normal, quem não tem sou eu e minha filha. Mas vou com ela até o final.”

“Depois do que aconteceu nunca mais vou conseguir ser feliz”

Juliana Silva *, 12 anos

O desabafo da garota custou a sair. Veio somente depois da insistência de uma amiga de escola para que Juliana contasse o que vivia nos últimos meses. A quebra do silêncio ajudou a endossar o já elevado percentual de 70% de familiares, como pais, mães e padrastos, acusados de violência sexual. “Existe um laço de confiança nas relações familiares e o abusador se aproveita dele para dar contornos de brincadeiras às ações abusivas”, afirma Ana Paula Freitas, advogada do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais). “O abusador não chega a deixar lesão física, o que torna mais difícil a descoberta do crime.”

Há um mês, o garoto Yuri Ruan Francisco Gonçalves, de 13 anos, despareceu ao sair de casa para empinar pipa na cidade de Itapevi, em São Paulo. Dias depois, foi encontrado pela polícia com marcas de agressão pelo corpo. As investigações concluíram que Yuri havia sido abusado por um homem conhecido e acolhido pela família do garoto.

“O abusador não deixa marcas, o que torna mais difícil a descoberta do crime”

Ana Paula Freitas, advogada do IBCCrim

De acordo com números divulgados em maio desse ano pelo Disque 100, foram recebidas mais de 76,2 mil denúncias de violações de direitos de crianças e adolescentes. Destas, 13,4 mil eram de abuso sexual e 3,6 mil de exploração sexual. Em 73,4% dos casos de abusos, as vítimas eram meninas e em 18,6%, meninos. O maior número de denúncias de cunho sexual se refere a pessoas que possuem convívio direto com os jovens, como pais, mães, padrastos, avós e cunhados.

Abuso silencioso

Apesar de alto, os números ainda são subnotificados e alguns motivos ajudam a entender o porquê desse silêncio. “Esse tipo de violência não costuma ser registrada em delegacia pelo fato de muitas vítimas estarem submetidas aos agressores pela relação familiar.” Além disso, a manipulação psicológica, segundo Freitas, faz parte do jeito de agir do abusador. “O núcleo familiar é o local onde a criança está mais envolvida. Ao mesmo tempo, ela não consegue entender o que é um crime sexual.”

A consciência para o abuso começa a se formar a partir dos 10 anos. Até esse momento, os atos são entendidos como formas de atenção em situações de carência afetiva. “Por isso, muitas pessoas chegam a acreditar que a criança ou o adolescente permitiu”, afirma Freitas. Vítimas que têm irmãos, normalmente, peferem não compartilhar as situações violência sexual pelas quais passaram para evitar o sofrimento dos familiares.

“Essas crianças estão imersas em situações de violência doméstica ou em que a mãe possui dependência financeira em relação aos companheiros”, diz Freitas. O advogado Ariel de Castro Alves, que atua nas áreas de Direitos Humanos, Infância e Juventude, afirma que quem deveria proteger, muitas vezes, aproveita-se da condição familiar para promover abusos. “Em alguns casos, as crianças correm mais riscos em casa do que nas ruas. Muitas até fogem de suas casas”, diz.

Quando as denúncias vêm à tona, elas normalmente são feitas, como no caso de Juliana, a um colega de convívio próximo à vítima. Há também outros caminhos que podem ser buscados, como as redes de proteção criadas por ONGs especializadas no atendimento de crianças e adolescentes. “Educadores e agentes de saúde são fundamentais tanto na prevenção quanto para detectar esses casos”, afirma Alves. A advogada do Ibccrim ressalta que é necessário dar mais atenção ao contexto que antecede o crime. “É muito difícil notar comportamentos diferentes em crianças que vivem em lares fragilizados, mas as pessoas do entorno devem tentar fazer esse acompanhamento”, diz Freitas.

“É difícil notar mudanças de comportamento em crianças que vivem em lares tão fragilizados”

Ana Paula Freitas, do IBCCrim

Outra dificuldade que se impõe em diversos estados, como São Paulo, é a falta de delegacias especializadas em crimes sexuais contra essa faixa etária. ‘Esses locais teriam profissionais mais qualificados, especialmente quanto ao ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente)”, afirma Alves. “Delegacias com equipes multidisciplinares poderiam atuar de forma integrada com conselhos tutelares, escolas e serviços de saúde para investigar desaparecimentos, estupros, assédios, maus-tratos, lesões corporais, homicídios, entre outros crimes.”

“Quando soube, não consegui parar de chorar”

Na noite em que soube sobre os abusos que Juliana, Rafaela não conteve o choro. Desligou o celular e ligou para a mãe e para o filho mais velho irem ao seu encontro. Em poucos minutos, todos se reuniram em um ponto de ônibus do bairro Recanto do Campo Belo, na zona sul de São Paulo. Rafaela abraçou a mãe e pediu ajuda.

“Conversei com a minha filha, perguntei se tinha sido alguém da escola e nada. A última pessoa de quem desconfiaria seria meu marido”, diz. “Ela não tinha nenhuma marca física, nenhuma agressão. Só depois percebi que ela estava afastada dele.” Rafaela trabalha durante todo o dia e faz curso a noite, rotina comum a muitas mães que relatam não perceber anormalidades no comportamento dos filhos vítimas de abuso sexual. “Entrei em desespero quando soube, não conseguia parar de chorar. Até hoje choro quando me lembro.”

No ponto de ônibus, Rafaela pediu que a filha contasse tudo que havia ocorrido. “Expliquei todas as consequências que aquilo poderia ter e chamamos a polícia”, lembra. “Na porta de casa, o policial pediu que eu o chamasse. Ele não reagiu. Passamos a madrugada toda na delegacia.”

“Vou com ela até o fim”

Rafaela Cristina da Cruz Silva, mãe de Juliana

Juliana sofria abusos por parte do pai havia pelo menos seis meses. “Ele a ameaçava, falando que se contasse ele faria a mesma coisa com a minha filha mais nova, de seis anos.” Hoje, Juliana conseguiu atendimento médico psicológico uma vez por semana e é acompanhada por uma orientadora pedagógica na escola. “Ela era doce e carinhosa, mas passou a ter momentos de agressividade e isolamento.”

Para o ouvidor do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Fernando César Pereira, o enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes passou a ser combatido somente em ambientes externos. “A violência sofrida em casa acaba sendo naturalizada. É preciso pensar em políticas públicas para acabar com esse ciclo dentro das casas”, disse.

*Juliana Silva é um nome fictício utilizado pela reportagem para preservar a identidade da vítima. 

FONTE: R7.COM

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