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Porte de armas para defesa pessoal salta 472% na Polícia Federal

Autorização para circular com os artefatos é “próximo passo” prometido por Bolsonaro; interessados buscam Exército para driblar burocracia da PF

Indicado como “próximo passo” do governo Bolsonaro em sua política armamentista, o porte de armas para cidadãos comuns ampliou seu espaço nos registros da Polícia Federal. Levantamento feito por VEJA mostra que apenas a a emissão deste tipo de autorização para defesa pessoal aumentou 472% em quatro anos: saltou de 517 em 2014 para 2.960 no ano passado, em uma escalada sem qualquer recuo.

A entrada em vigor de critérios “mais objetivos” que facilitaram a posse não foi o bastante para parte da base de apoio do presidente Jair Bolsonaro (PSL), que fez da iniciativa uma de suas plataformas de campanha. Mais do que ter uma pistola dentro de casa, esse público sentiu-se frustrado por não ver atendido o desejo de poder andar com ela em locais públicos.

A autorização para circular com uma arma é mais complexa e qualquer mudança em suas regras depende do Congresso, algo além do alcance da caneta presidencial. Quem solicita o porte, mais do que declarar “efetiva necessidade”, precisa comprová-la perante a Polícia Federal.

Esta diferença se traduz nos números da corporação. A quantidade de porte para defesa pessoal é apenas uma fração da expedição de novos registros de posse de armas, que saltou de 39.821 em 2014 para 49.837 no ano seguinte e teve poucas oscilações desde então. Em 2018, esta cifra ficou em 48.330.

Entre os entusiastas das armas, o caminho do registro de posse pela PF é considerado mais tortuoso, pois o interessado fica sujeito à avaliação da “efetiva necessidade” pelo órgão — percalço que o decreto pretende eliminar. O atalho encontrado passa pelo Exército, que responde pelo registro e concessão de porte de arma de fogo para colecionadores, atiradores e caçadores.

Com a promessa de uma perambulação burocrática mais tranquila, a redenção dos armamentistas atende pelo nome de Sigma, sigla para o Gerenciamento Militar de Armas. Com uma associação a um clube de tiro esportivo, o interessado consegue, além de driblar a avaliação de “necessidade”, uma permissão para se deslocar com a arma até o local de prática.

O caminho mais fácil é também mais caro. Incluindo os custos com documentação, certidão e curso de tiro, o registro pelo Exército é estimado entre 3.500 e 4.000 reais. Pela Polícia Federal, o registro no Sinarm (Sistema Nacional de Armas) fica em torno de 2.500 reais.

Mas os valores não parecem intimidar os interessados. O total de armas registradas no Sigma por atiradores, caçadores e colecionadores cresce ano a ano. De 2014 para 2015, o número praticamente dobrou e saltou de 10.558 para 20.446. No ano seguinte, foi a 32.662 e chegou a 58.468 registros em 2018.

Nelson de Oliveira Júnior, 65 anos, 30 deles como atirador, colecionador, caçador e instrutor, estima que 95% do público que frequenta o clube do qual é presidente tenha registro pelo Sigma. Para mantê-lo, o Exército exige que seu portador compareça ao menos oito vezes a estabelecimentos deste tipo.

Além da facilidade, ele enumera outras vantagens para que opta pelo Sigma: o atirador pode comprar armas de calibre restrito e munição direto da fábrica, sem incidência de ICMS, apenas IPI. Para quem compra com permissão do Sinarm, além de pagar todos os impostos, fica restrito aos calibres permitidos. A participação em competições estaduais e nacionais também podem elevar o limite de armas por pessoa a 16. Pela PF, já com as novas regras editadas por Bolsonaro, o teto é de quatro armas.

“Colecionadores e atiradores já podem adquirir armas, inclusive de calibre restrito, por meio do sistema do Exército. Por que que eles, assim como outras categorias incluídas no decreto, como militares, iriam à Polícia Federal para comprar armas de calibre permitido se podem adquirir algo superior? Se você compra uma arma pela PF, essa arma vai ficar exclusivamente na sua residência. É a mesma coisa de comprar um carro e dizer que ele deve ficar na sua casa”, explica Júnior.

O Exército, entretanto, faz um alerta: “As armas registradas para a atividade do tiro desportivo somente podem ser utilizadas nessa atividade, não podendo ser utilizadas para porte, como defesa pessoal, incorrendo em crime comum a pessoa que descumprir tal regulamentação.”

O Estatuto do Desarmamento sempre previu em seu texto que bastava ao interessado em obter a posse de armas apresentar uma declaração de “efetiva necessidade”. Mas este requisito, além da comprovação de idoneidade e capacidade técnica e psicológica, sempre encontrou obstáculo na burocracia da Polícia Federal.

Amparados em um rosário de instruções normativas da PF, os delegados responsáveis pela análise dos pedidos tinham espaço para exigir documentos extras para comprovar o que estava escrito na declaração. Uma nova norma interna, de novembro de 2018, de certa forma antecipou, com bem menos alarde, o “espírito” do decreto de Bolsonaro ao reduzir este poder discricionário.

Na prática, o texto assinado por Bolsonaro mantém as regras que já existiam, como idade mínima de 25 anos, ficha criminal limpa e aptidão psicológica e técnica para o manuseio da arma. Mas alarga a hipótese de efetiva necessidade ao presumi-la a qualquer morador de área urbana ou rural em unidades da federação com mais de 10 homicídios por 100.000 habitantes. Todos os estados brasileiros e o Distrito Federal estão acima deste número.

O índice de homicídios que serve de referência no decreto é o Atlas de Violência, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Ao fixar os resultados de 2016 como norte, o decreto descarta qualquer possibilidade de sucesso na política de segurança pública que permita aos estados apresentarem números mais civilizados. O estado com a melhor taxa é São Paulo, com 10,9 homicídios para cada 100.000 habitantes.

O relatório também mostra que 71,1% dos homicídios praticados naquele ano foram praticados com armas de fogo. Entre suas conclusões, o Atlas da Violência lembra que a difusão de armas de fogo “jogou mais lenha na fogueira da violência letal”. O estudo menciona que, desde 1980, o crescimento dos homicídios foi basicamente devido às mortes com o uso de armas de fogo, uma vez que os assassinatos causados por outros meios permaneceram constantes desde o começo da década de 90.

O estudo também cita que o Estatuto do Desarmamento, aprovado em 2003, interrompeu a “corrida armamentista” que impulsionava mortes violentas e impediu um crescimento de 12% além do registrado. “Não fosse essa legislação que impôs um controle responsável das armas de fogo, a taxa de homicídios seria ainda maior que a observada.”

Outra mudança que o decreto traz é a ampliação do prazo de validade do registro de arma, que passa para dez anos — de brinde, os registros já existentes foram automaticamente renovados pela canetada de Bolsonaro. Quem mora com crianças, adolescentes ou portadores de alguma deficiência mental tem só que declarar que possui um cofre ou “local seguro com tranca”.

“O decreto deixa claro e objetivo, para não haver qualquer dúvida, os critérios para a posse de arma”, avalia o delegado Luciano Leiro, vice-presidente da Associação dos Delegados da Polícia Federal. Ele não crê, entretanto, que a novidade legislativa vá causar um aumento significativo na emissão destes registros.

O advogado criminalista João Paulo Martinelli, doutor em direito penal pela USP e professor de Direito Penal do IDP/SP, vê com desconfiança os efeitos positivos do decreto, na redução dos índices de criminalidade. “Medidas simplistas nunca foram suficientes para resolver problemas sérios”, teoriza.

O texto tem, entretanto, um efeito colateral imediato ao abrir espaço para “anistiar” quem responde a processos por posse irregular de armas ou foi condenado por este delito. Isso porque a aplicação da lei penal pode retroagir em favor do réu. “No caso de retroatividade, a pena da posse ilegal é extinta, cabendo novo cálculo de pena se houver outros crimes envolvidos. Se a redução da pena for suficiente, é possível requerer a progressão de regimes”, explica o professor.

FONTE: VEJA.COM

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