Brasil

Odebrecht omitiu pagamentos de propina em delação

Vazamento do sistema Drousys, que geria a propina da empresa, mostra repasses que não constavam dos depoimentos dos executivos que fizeram colaboração com a Justiça brasileira, americana e suíça

O chão do Brasil não foi o único a tremer em dezembro de 2016, quando a Odebrecht assinou com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DoJ) e as Procuradorias-Gerais da República do Brasil e da Suíça um acordo de leniência em que revelava detalhes do maior caso de suborno estrangeiro já descoberto no mundo. Nas principais economias da América Latina, começava ali a ser desfeito um novelo de corrupção que permitiu o financiamento eleitoral de diversos projetos de poder, e bilhões de faturamento para a Odebrecht, à base de milhares de pagamentos ilegais. De lá para cá, a América Latina nunca mais foi a mesma. Governos caíram. Ex-presidentes e outros altos funcionários, juntamente com executivos da Odebrecht, deixaram seus gabinetes de poder para as celas de prisão. As confissões dos delatores da empresa deram uma detalhada versão de seus delitos, e, desde então, a empresa aceitou cooperar com os procuradores da região, que, uns mais outros menos, vêm tentando levar os delatados à Justiça.

MAS A DELAÇÃO DA ODEBRECHT NÃO CONTOU A HISTÓRIA TODA.

The Bribery Division, uma nova investigação global liderada pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ), revela que a operação de compra de contratos da Odebrecht era ainda maior do que a empresa havia assumido e envolveu figuras proeminentes e projetos massivos de obras públicas não mencionados nos processos criminais ou outros inquéritos oficiais até agora.

Essas descobertas foram feitas a partir de uma nova lista de registros vazados de uma divisão da Odebrecht, o Setor de Operações Estruturadas, criado principalmente para gerenciar os subornos da empresa. Os registros foram obtidos pelo site equatoriano La Posta e compartilhados com o ICIJ e 17 parceiros de mídia das Américas. No Brasil, jornalistas de ÉPOCA e do site Poder 360 participaram da investigação.

As reportagens serão publicadas a partir desta quarta-feira, 26 de junho.

Os registros do departamento de propina revelam pagamentos secretos em toda a América Latina, que se estendem muito além do que foi publicamente relatado pela Odebrecht, incluindo:

– US$ 39 milhões em pagamentos secretos da empresa feitos em conexão com a gigante usina a carvão de Punta Catalina, na República Dominicana;

– 17 pagamentos totalizando cerca de US$ 3 milhões relacionados a um gasoduto peruano;

– e-mails discutindo pagamentos secretos que um banco da Odebrecht fez a empresas -fantasmas relacionados à construção de um sistema de metrô de US$ 2 bilhões em Quito, capital equatoriana;

– pagamentos relacionados a uma dúzia de outros projetos de infraestrutura em países da região, incluindo cerca de US$ 18 milhões ligados ao sistema de metrô na Cidade do Panamá e mais de US$ 34 milhões ligados à Linha 5 do sistema de metrô em Caracas, Venezuela.

Os arquivos contêm 13 mil documentos que haviam sido armazenados por essa divisão em uma plataforma secreta de comunicações, o Drousys. Esses arquivos foram obtidos separadamente pela agência de notícias equatoriana Mil Hojas, que se juntou ao projeto.

Por mais de quatro meses, o ICIJ trabalhou em parceria com mais de 50 jornalistas em 10 países para investigar os livros contábeis da divisão de propina da Odebrecht.

Em nota enviada ao ICIJ, a Odebrecht afirmou estar comprometida com a total cooperação com as autoridades que investigam a corrupção associada à empresa. “A Odebrecht continuará empenhada em um processo de colaboração irrestrita com as autoridades competentes”, afirmou a empresa, que se recusou a responder a perguntas sobre casos individuais.

“Todos os documentos e testemunhos referentes aos acordos de leniência assinados em diversas jurisdições, inclusive a base completa de registros dos sistemas Drousys e MyWeb Day, do extinto Setor de Operações Estruturadas, estão sob custódia do Ministério Público Federal brasileiro  e do Departamento de Justiça americano, ficando disponíveis para aqueles países que celebraram os respectivos acordos e concluíram o processo de homologação. Um procedimento da justiça amparado internacionalmente e que estabelece a confidencialidade da informação com o objetivo de resguardar os avanços das investigações, respeitando a soberania de cada nação e buscando a eficácia das ações legais contra os acusados”, afirmou nota enviada a ÉPOCA.

Mas os arquivos vazados deixam claro que a rede de corrupção da Odebrecht se estende a projetos de obras e figuras públicas que não foram abordadas na delação, levantando questões sobre se a Odebrecht foi totalmente sincera com as autoridades e sobre a vontade política de procuradores de alguns países de realmente investigar os casos denunciados.

Empresas offshore sem transparência canalizaram centenas de milhões de dólares em pagamentos secretos através de empresas e bancos em países ao redor do mundo, incluindo Estados Unidos, China, Suíça, Holanda, Emirados Árabes Unidos, Panamá e Antígua. Em um exemplo, os pagamentos passaram da Odebrecht por meio de uma empresa constituída nas Bahamas para uma com um endereço na República Dominicana, que mais tarde comprou um apartamento de US$ 2 milhões no centro de Manhattan.

Ao todo, a Odebrecht pagou mais de US$ 788 milhões em propinas entre 2001 e 2016, resultando em US$ 3,3 bilhões em benefícios ilícitos, de acordo com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos.

Os documentos mostram o período em que Marcelo Odebrecht dirigiu a empresa, exatamente o mesmo em que o Drousys foi montado. Fundada em 1944 por Norberto Odebrecht, descendente de imigrantes alemães do século XIX, em Salvador, a Odebrecht tornou-se a maior construtora da América Latina, e governos de toda a região confiaram nela para realizar importantes obras públicas, de infraestrutura, desde barragens a rodovias até usinas elétricas.

Sua liderança se manteve na família Odebrecht, com sua presidência passando de Norberto para seu filho, Emilio, em 1991, e seu neto, Marcelo, em 2009.

Sob a liderança de Marcelo, conhecido na América Latina pelo sugestivo epíteto de O Príncipe, as receitas anuais da empresa dispararam, de US$ 17,5 bilhões em 2008 para US$ 45,8 bilhões em 2014. Concorrendo com êxito para projetos de grande sucesso –incluindo o gasoduto de US$ 7 bilhões no Peru , a usina a carvão dominicano de US$ 2 bilhões e o sistema de metrô de US$ 2 bilhões em Quito — a Odebrecht solidificou seu status de empreiteira dominante na América Latina e tornou — se uma das maiores empreiteiras do mundo.

Embora já estivesse em boa parte do continente antes da chegada do PT ao poder, em 2002, a Odebrecht se beneficiou de laços estreitos com o ex-presidente Lula, cuja administração recorreu à empresa para realizar projetos de infraestrutura que faziam parte de sua ambiciosa agenda de desenvolvimento e combate à pobreza.

Mas o rápido crescimento da empresa sob Marcelo Odebrecht também foi impulsionado por outro fator: a corrupção em massa.

A escala da operação de suborno da Odebrecht tornou-se tal que, em 2006, a empresa criou o Setor de Operações Estruturadas, para gerir os pagamentos ilegais. Todos os pagamentos da unidade estavam fora dos livros, conforme revelou mais tarde o ex-tesoureiro da divisão, Fernando Migliaccio.

No entanto, nem todos os pagamentos registrados no Drousys foram subornos, segundo a Odebrecht.

“Diversas obras da empresa estão registradas nesses sistemas”, disse a divisão peruana da Odebrecht em uma declaração de julho de 2018, em referência ao Drousys e a outra plataforma não oficial usada pela unidade de Operações Estruturadas, o MyWebday. “Isso não significa que todos eles envolvam corrupção ou suborno”.

COMO FUNCIONAVA O DROUSYS

Tabelas impressas e guardadas em pastas no apartamento de uma secretária do baixo escalão da Odebrecht foi a confirmação daquilo que em 2016 autoridades brasileiras desconfiavam pela leitura de e-mails e documentos apreendidos em operações de busca e apreensão: fundada sob a égide da ética protestante alemã, a maior empresa de infraestrutura brasileira era metódica e rigorosa no registro de suas atividades, nos balanços de obras, no controle de lucros e também no pagamento de propina a agentes públicos.

As tabelas encontradas na casa da secretária eram apenas um fragmento de um grande arquivo de dados, muito mais detalhado e registrado em dois sistemas de informática usados pela empresa, conhecidos pelos nomes de MywebDay e Drousys.

O primeiro consistia em ferramenta de comunicação usada apenas por funcionários do Setor de Operações Estruturadas para se comunicar e controlar internamente a operacionalização do pagamento de vantagens indevidas a agentes políticos das mais diferentes matizes políticas, no interesse dos contratos firmados pelo Grupo Odebrecht.

O segundo sistema, o Drousys, era acessado não apenas pelos funcionários das Operações Estruturadas, mas também doleiros e outros operadores financeiros que atuavam para viabilizar pagamentos ilegais, definidos em comum acordo com os executivos da empresa. Plataforma colaborativa, o Drousys permitia o armazenamento de arquivos de texto, planilhas do excel, trocas de e-mails, chats e outros documentos vinculados aos pagamentos secretos feitos a políticos.

Os dois sistemas eram protegidos por senhas de acesso e chaves de criptografia, em função do sigilo que envolvia o trabalho. Estavam sob o comando do Setor de Operações Estruturadas, cujos funcionários trabalhavam em Salvador, cidade onde a empresa foi fundada, e São Paulo, centro financeiro do país e onde estava localizado o principal escritório do grupo.

Quando investigadores da Lava Jato confirmaram a existência do sistema e conseguiram ter acesso a algumas de suas partes, no início de 2016, as negociações por um acordo de colaboração ganharam força. Até o fim daquele mesmo ano, a empresa assinaria sua colaboração com as autoridades brasileiras, comprometendo-se a entregar aos procuradores cópias de todos os documentos dos sistemas que estivessem à sua mão.

Em março de 2017, a empreiteira entregou à força-tarefa Lava-Jato, em Curitiba, quatro HDs que totalizam 3,5 terabytes, com informações do Drousys e do MywebDay. A cada país em que a Oderebcht firma um acordo, pedaços do Drousys também são entregues.

Originalmente guardados em um servidor da Suíça, os dados do Drousys e do MywebDay foram transferidos para um servidor na Suécia quando as investigações avançaram sobre a empreiteira brasileira, no início da Lava-Jato. Os dados são entendidos pelos investigadores como “uma fotografia no tempo”, já que a natureza do sistema fazia com que informações mudassem à medida em que usuários criavam, alimentavam ou apagavam arquivos.

O sistema de pagamento de propinas da Odebrecht era estruturado em quatro camadas, de modo a impedir que executivos conhecessem detalhes sobre o trabalho de quem operacionalizava os pagamentos ilegais até a ponta final.

A primeira camada era ocupada pelos líderes empresariais e executivos, responsáveis por definir que político deveria ser pago.

Na segunda camada, estavam os funcionários do Setor de Operações Estruturadas. Eles  usavam o MywebDay para se comunicar entre si e o Drousys para acionar a terceira camada — composta por operadores financeiros e doleiros que viabilizavam os pagamentos em espécie, no Brasil, ou em contas no exterior.

OS APELIDOS

Os funcionários da Odebrecht e os destinatários do suborno são referenciados apenas por codinomes, muitos dos quais ainda precisam ser decifrados. Até hoje, os procuradores brasileiros não sabem, por exemplo, quem é o Tremito — há quem diga até que seja Michel Temer, mas não há comprovação.

Os documentos incluem discussões francas e explícitas sobre como garantir o sigilo do sistema. Uma sequência de e–mails é uma discussão sobre a necessidade de dividir pagamentos multimilionários em incrementos menores para evitar que os bancos fiquem desconfiados.

Também existem planilhas que rastreiam os pagamentos da divisão de suborno. Uma das tabelas lista mais de 600 desembolsos, totalizando US$ 230 milhões emitidos a partir do final de 2013 até 2014.

Entre os projetos que os pagamentos secretos da unidade ajudaram a direcionar para a Odebrecht, revelam as investigações criminais, estava o sistema de trânsito rápido em Lima, no Peru; uma represa no estado de Michoacán, México; e um projeto de energia hidrelétrica no Equador.

O funcionamento do esquema foi descrito pela própria Odebrecht, no acordo firmado com Brasil, Estados Unidos e Suíça — os dois últimos países aderiram ao caso ao descobrir que os pagamentos ilegais da empresa passaram por bancos suíços e americanos. A empresa evitou o processo de acusação ao consentir uma declaração pública detalhada de seus crimes e concordou em pagar uma multa de US$ 2,6 bilhões.

A “declaração de fatos” de 23 páginas do acordo estabelece detalhadamente a criação do Setor de Operações Estruturadas e sua finalidade. A Odebrecht admitiu que a divisão canalizou fundos de curto prazo para empresas offshore e bancos baseados em paraísos de sigilo financeiro, às vezes usando contratos fictícios para cobrir suas operações. O dinheiro acabou sendo usado para pagar propinas a políticos, funcionários públicos e partidos políticos.

Como parte das divulgações obrigatórias, a Odebrecht entregou documentos do Ministério Público, incluindo planilhas de rastreamento de pagamentos ocultos, declarações de contas bancárias no exterior, e-mails, registros de transações, contratos e registros de computadores, todos armazenados em seu sistema Drousys.

Os acordos de cooperação e confissões geraram acusações de alto perfil. O ex-vice-presidente do Equador, Jorge Glas, está preso após ser condenado por aceitar suborno da Odebrecht. O ex-presidente peruano Ollanta Humala enfrenta acusações de corrupção com pena de prisão de 20 anos.

Em abril de 2019, a polícia conseguiu um mandado de prisão relacionado à Odebrecht que chegou à porta do antecessor de Humala, o ex-presidente peruano de dois mandatos, Alan Garcia. Enquanto tentavam prendê-lo, Garcia se trancou em um quarto, sacou uma arma e se matou.

Os promotores disseram que o caso da Odebrecht foi um marco na luta contra a corrupção pública na América Latina e no mundo.

Robert L. Capers, então procurador do Distrito Leste de Nova York, disse em comunicado que anunciou o acordo da Odebrecht: “A mensagem enviada por essa promotoria é que os Estados Unidos, trabalhando com seus parceiros no exterior, não hesitam em responsabilizar as corporações e indivíduos que buscam enriquecer-se através da corrupção das funções legítimas do governo, por mais sofisticado que seja o esquema”.

A BOA IMPRESSÃO

Acontece que o vasto acordo com o Brasil, os EUA e a Suíça tinha algumas limitações significativas.

A Odebrecht, na verdade, não foi forçada a contar tudo. Sua declaração detalhada de fatos, por exemplo, revela quanto a empresa pagou em subornos em toda a região, mas não especifica quais projetos foram os sujeitos dos pagamentos ou quem os recebeu.

Os promotores de outros países estão trabalhando com as autoridades brasileiras para construir seus próprios casos e alguns apresentaram acusações contra políticos e outros que foram implicados no esquema da Odebrecht. Os executivos da empresa, enquanto isso, estão negociando acordos de imunidade ou clemência em troca de cooperação. Até o momento, existem acordos no Peru, na República Dominicana, no Panamá, no Equador e na Guatemala, além do Brasil, dos Estados Unidos e da Suíça.

Um problema é que os países envolvidos na investigação devem concordar em não processar os executivos da Odebrecht que já fizeram acordos com o Brasil.

Mas muito depende dos governos terem recursos para investigar e processar esses crimes, dizem os analistas, e se eles têm vontade política. A operação de suborno da Odebrecht atingiu os níveis mais altos da política e da sociedade em toda a região, e as respostas nacionais variaram muito. Por exemplo, nos últimos dois anos, os promotores peruanos fizeram 68 pedidos de documentos às autoridades brasileiras; os promotores dominicanos fizeram três.

Até o começo deste mês, foram feitos em pouco mais de cinco anos de Lava Jato 360 pedidos ativos de cooperação das forças-tarefas em Curitiba, Rio de Janeiro e na PGR do para 60 países, e recebidos 470 pedidos de 35 países.

Os números acima, embora sejam públicos, não foram repassados oficialmente pela Procuradoria-Geral da República no Brasil, mas sim sob a condição de anonimato por procuradores. No Brasil, tal qual em alguns dos países em que a Odebrecht admitiu crimes, o compromisso com a transparência pública também oscila.

FONTE: ÉPOCA

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