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Acusado de matar Marielle fazia parte de esquadrão da morte no RJ com carteirinha de assassino

Apontado como assassino da vereadora do PSOL, ex-policial tinha ficha limpa, apesar de ser sócio registrado de esquadrão da morte

Cem homens vestidos de preto ou com uniformes camuflados tentam resgatar quatro policiais que ficaram encurralados em área dominada por traficantes. A situação é tensa. Tiros vêm de todos os lados. Um grupo de soldados faz uma manobra arriscada numa tentativa de resgate dos colegas isolados. A caminhonete modelo D-20, sem blindagem, avança no território adversário. De dentro dela, homens abrem fogo intenso. O resgate é feito com sucesso. Não é ficção. O embate aconteceu, nos anos 2000, num dos acessos ao Complexo do Alemão, conjunto de favelas da Zona Norte do Rio de Janeiro. A tropa de “kamikazes” era formada por policiais militares cedidos à Polícia Civil do Rio, responsável pela operação do dia. Esses PMs a serviço da Civil eram chamados de “adidos” pelo próprio estado. Entre eles destacava-se Ronnie Lessa, principal suspeito do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) e do motorista Anderson Gomes, ocorrido em 14 de março do ano passado.

“Ele se sentia um soldado em plena Guerra do Vietnã. Fizemos algumas operações em conjunto com boa parte das delegacias especializadas da Polícia Civil. A bala voava, e o grupo deles aparecia nas piores situações. Lessa era um serial killer. Já levou vários tiros, mas se manteve de pé. Era um verdadeiro soldado de guerra. Máquina de matar”, contou um experiente policial civil que atuou em campo com Lessa.

Nas operações policiais, Lessa optava por ocupar a linha de frente. De acordo com relatos de ex-companheiros, ao ser cedido à Polícia Civil, mantinha o salário na PM e tirava proveito das operações, apropriando-se de dinheiro, eletrônicos, drogas e armas apreendidos com traficantes, chamados no jargão policial de “espólio de guerra”. Sua carreira na PM se encerrou em 2009, quando perdeu a perna esquerda na explosão de uma bomba, dentro do próprio carro que dirigia.

Em abril de 2010, depois do incidente com Lessa, ocorreu um atentado à bomba — com as mesmas características da que explodiu no veículo do PM — cujo alvo era o bicheiro Rogério Andrade. Nessa explosão, a vítima foi Diogo Andrade, de 17 anos, filho do contraventor. Um laudo especializado revelou que as duas bombas tinham o mesmo método de detonação, aumentando as chances de os crimes terem tido os mesmos executores.

Com soldo de R$ 7 mil, Lessa morava num condomínio de frente para a Praia da Barra da Tijuca, onde o presidente da República, Jair Bolsonaro, tem casa. Seu patrimônio aumentou depois que passou a oferecer seus serviços de segurança para a contravenção — segundo a polícia, ele já trabalhou para o próprio Rogério Andrade.

A Operação Lume, desencadeada pela Delegacia de Homicídios da Capital (DH) e pelas promotorias do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público do Rio, desvendou outra faceta de Lessa: a de contrabandista de armas. Em 12 de março, os investigadores encontraram 117 fuzis incompletos, em caixas fechadas, no apartamento de Alexandre Mota de Souza, amigo do tenente reformado. À polícia, ele disse que as armas, do tipo M16, pertenciam a Lessa.

Há dez dias, policiais e procuradores, com o apoio da Marinha, vêm fazendo buscas no mar da Barra da Tijuca na tentativa de encontrar armas, em especial a submetralhadora HK MP5 usada nos homicídios de Marielle e Anderson. Elas teriam sido lançadas no mar por integrantes da quadrilha do PM preso, segunda denúncia anônima que chegou à polícia. O armamento fazia parte do arsenal de Lessa escondido num apartamento no Pechincha, bairro de Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio, um dos alvos da Operação Lume, situado no mesmo condomínio de sua sogra. No local havia uma mesa para montagem de armas, chamada de torno, mas apenas jornais espalhados pelo chão. Imagens do circuito interno de segurança do prédio, no entanto, registraram o momento em que um homem deixou o apartamento com seis caixas e uma mala. Esse teria sido o material jogado no mar.

Os investigadores já identificaram e ouviram o homem flagrado pelas câmeras. Também prestou depoimento na DH uma testemunha que informou ter visto duas pessoas alugarem uma lancha, por dois dias, no Quebra-Mar da Barra da Tijuca, com seis caixas de papelão e uma mala, o que bate com a descrição das imagens do material que deixou o apartamento do Pechincha. O Quebra-Mar foi um ponto muito frequentado por Ronnie Lessa. Nesse local, ele teria estado a bordo, segundo a polícia, de um Cobalt prata dirigido pelo ex-PM Elcio Vieira Queiroz e usado na emboscada a Marielle e Anderson. Ali, em abril de 2018, Lessa sofrera uma tentativa de assalto da qual saiu baleado.

Mesmo sem fazer curso de

A vida militar de Ronnie Lessa começou em 1988, aos 18 anos, quando serviu o Exército. Integrou também uma associação criada em 1965 por policiais fluminenses, conhecida como Scuderie Detetive Le Cocq. O grupo atuava como um esquadrão da morte, cujo objetivo principal era vingar a morte de policiais. Lessa conseguiu sua carteira de membro da organização em 1989, com a matrícula 3.127.

A organização paramilitar surgiu depois da morte de um famoso detetive de polícia do Rio, Milton Le Cocq, assassinado na década de 60 por um bandido chamado Manoel Moreira, o Cara de Cavalo. A Scuderie Detetive Le Cocq foi o mais famoso esquadrão da morte no Brasil. Lessa tem tatuadas no peito três caveiras estilizadas, semelhantes àquela usada no brasão do Bope, o Batalhão de Operações Policiais Especiais, da PM do Rio. Acima das caveiras, Lessa colocou no peito uma figura que pode ser uma cruz ou um alvo.

“A imagem de caveiras pode ter inúmeros significados. A cruz de cima não parece uma cruz celta. Lembra mais um alvo no centro da testa, um símbolo de mercenário pago para matar. Comum em gangues do Leste Europeu. Pessoas sem comprometimento com justiça, apenas com pagamentos. Samurais sem clã, pagos”, explicou Adriana Dias, doutora e mestre em antropologia social pela Universidade de Campinas (Unicamp).

Tornar-se “caveira” do Bope era a aspiração de Lessa. Em novembro de 1991, ele ingressou na Polícia Militar. No ano seguinte passou pelo Batalhão de Choque. De maio de 1993 a janeiro de 1997, integrou, finalmente, a tropa de elite. Nunca fez, no entanto, o curso de operações táticas necessário para o exercício da função, de acordo com sua ficha como policial militar.

Um oficial do Bope relatou que, no passado, era comum que fossem agregados à tropa policiais sem o curso de formação. Havia demanda de serviços, e o curso de operações especiais era demorado. Então, recrutavam-se policiais da tropa, que recebiam um treinamento rápido para poder atuar.

Outro militar da tropa de elite, com a condição de anonimato, lembrou a passagem de Lessa pelo Bope: “Extremamente frio, personificava o combatente do Bope. Ele era estilo soldado universal. Muito técnico, tudo que ele fazia dava certo. Exímio atirador. Por não ter feito o curso do Bope, teve de ir embora. Não entendi por que não fez o curso. Por ser destemido ao extremo, todos nós o respeitávamos como profissional, mas infelizmente se desviou”.

Tatuagem de Lessa com três caveiras e o possível alvo. Foto: Reprodução

Em 1997, ante a exigência de realizar ao menos o Curso de Ação Tática — um preparatório para policiais do Bope sem formação —, Lessa trocou a tropa de elite pelo 9º Batalhão da Polícia Militar (BPM), no bairro de Rocha Miranda, que tinha fama de violento. Foi de lá que saíram os policiais condenados na chacina de Vigário Geral, ocorrida em 1993, quando 21 pessoas — oito delas evangélicos de uma mesma família — foram assassinadas. Os PMs de lá eram conhecidos como Cavalos Corredores.

Na unidade, o militar foi promovido por bravura duas vezes no mesmo ano: uma em 28 de maio de 1997, saindo de soldado para cabo, e outra em 31 de dezembro de 1997, promovido a terceiro-sargento. Nos boletins da PM, exaltavam-se os bons serviços prestados “pela abnegação e desempenho demonstrados no cumprimento das missões”. Em sua ficha funcional, está lá: comportamento “bom”, com curso de auxiliar de patologia clínica e formação de sargentos.

Em abril de 1998, Lessa ganhou distintivo de bravura e chegou a receber a chamada “gratificação faroeste” — bônus concedido pelo estado aos policiais por produtividade. Ele e sua guarnição haviam apreendido 2 quilos de cocaína, uma pistola e dois revólveres, além de farta munição, num beco na favela de Parada de Lucas, na Zona Norte do Rio. A ação ocorrera às 14h15 de 14 de abril daquele ano. No boletim da PM, um extenso elogio: “Os policiais demonstraram estar sempre prontos para cumprir seus deveres, não permitindo, desta forma, que algozes desta estirpe perturbem a ordem pública”.

Em 23 de novembro de 1998, Ronnie Lessa recebeu uma moção do reconhecimento do deputado estadual Pedro Fernandes (PSD), avô do atual secretário estadual de Educação, Pedro Fernandes. O parlamentar destacou na época: “Sem nenhum constrangimento, posso afirmar que o referido militar é digno desta homenagem por honrar, permanentemente, com suas posturas, atitudes e desempenho profissional, sua condição humana e de militar discreto, mas eficaz”.

Em 3 de março de 1999, Lessa se matriculou no estágio de aplicação tática, curso de especialização da corporação, passando depois pelo 14º BPM, em Bangu, e pelo 16º BPM, em Olaria. Em 2003, foi cedido à Polícia Civil. Trabalhou na extinta Delegacia de Repressão a Armas e Explosivos — que tem a mesma função da atual Desarme —, na Delegacia de Repressão a Roubo de Cargas e na extinta Divisão de Capturas da Polinter Sul.

Passou incólume pela Operação Guilhotina, ação deflagrada pela Polícia Federal que apurou a corrupção na Polícia Civil. A maioria de seus colegas, adidos da Polícia Civil como ele, foi indiciada e condenada. Um deles era Elcio Vieira de Queiroz, que foi expulso da corporação e agora é suspeito de ser o motorista do Cobalt prata usado no crime contra Marielle. Ao contrário de Queiroz, Lessa era ficha limpa até sua prisão, em 12 de março. Os dois foram inicialmente para a penitenciária de segurança máxima Bangu 1. No dia 29, foram transferidos para a Penitenciária Federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte.

Mal pisaram em solo potiguar, Lessa e Queiroz estão prestes a mudar de presídio federal. O juiz corregedor da Penitenciária Federal de Mossoró, Walter Nunes da Silva Junior, pediu aos procuradores regionais dos Direitos do Cidadão que se pronunciem sobre a permanência dos dois por lá. É que a dupla está na mesma unidade que o miliciano Orlando Oliveira de Araújo, o Curicica. No início das investigações do assassinato de Marielle e Anderson, o paramilitar foi apontado como um dos suspeitos do duplo homicídio pela DH, sendo enviado para Mossoró a pretexto do crime de posse de arma. Na verdade, a decisão se deveu à repercussão do caso.

FONTE: ÉPOCA

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