Nos últimos 180 dias, Ferguson, uma cidade pobre de 21 mil habitantes (67% negros), na periferia de Saint Louis, Estado do Missouri, no sul dos Estados Unidos, viveu sufocada por um calor intenso e pela angústia sobre o julgamento do policial Darren Wilson. Em agosto, Wilson matara a tiros o jovem negro Michael Brown, de 18 anos. Na semana passada, quando o grande júri do Estado decidiu não indiciar Wilson nem submetê-lo a julgamento, o Missouri pegou fogo. A decisão provocou uma onda de protestos ainda mais violenta que a gerada depois do assassinato de Brown. A família de Brown se disse “profundamente decepcionada” com a decisão e “indignada com as tentativas de desqualificar o jovem”.
A principal reclamação dos manifestantes era contra injustiças e deslizes legais cometidos durante o julgamento. Juristas vieram a público afirmar que não houve erro processual no julgamento, mas que pode ter ocorrido injustiça. Nos Estados Unidos, dificilmente um promotor não consegue indiciar um suspeito e levá-lo a julgamento. No ano passado, em apenas 11 dos 162 mil casos um acusado não foi levado a julgamento. Advogados de defesa costumam dizer que júris aprovam o indiciamento de suspeitos mesmo quando as acusações são frágeis. Nas palavras de Sol Wachtler, um conhecido jurista americano, “um promotor pode persuadir um júri a indiciar um sanduíche de presunto, se quiser”.
É difícil avaliar se Robert McCulloch, o promotor do distrito de St. Louis responsável pelo caso de Brown, quis indiciá-lo. O júri participou de 25 audiências, ouviu 70 horas de depoimentos de testemunhas e avaliou cada prova obtida sobre os 90 segundos entre a abordagem de Wilson a Brown, numa rua de Ferguson, e o momento em que ele disparou seis tiros contra o jovem negro que acusou de tentar atacá-lo. Sua conclusão foi que não havia uma “possível causa” para o indiciamento. O caso de Brown se assemelha a muitos outros em que um policial matou alguém nos Estados Unidos. Em 2013, nas 410 vezes em que ocorreu um caso do gênero, chamado de “homicídio justificável”, em apenas duas vezes houve acusação formal contra o policial.
Esse é um ponto fundamental: para o júri, a questão nunca foi decidir se Wilson, branco, matou a tiros o negro desarmado Brown. A questão era se o incidente constituiu um crime. Ao negar-se a indiciar Wilson, o júri chegou a uma conclusão que é norma nesses casos. “É raríssimo um policial ser indiciado e condenado por um crime nesse tipo de situação”, disse Chuck Drago, consultor e ex-chefe de polícia da Flórida. Um caso similar ocorrido em 1989, julgado pela Suprema Corte, moldou as decisões posteriores. Segundo a Suprema Corte, o uso da força deve ser avaliado “pela visão de um policial no local e no momento”. A maioria dos casos que não terminam em indiciamento criminal envolve suspeitos armados baleados em confronto com a polícia. Mesmo um policial que dispara contra alguém desarmado pode evitar um julgamento se afirmar que corria risco iminente.
Os protestos de Ferguson evocam um dos mais graves distúrbios raciais da história dos Estados Unidos, ocorrido em 1992. Ele foi desencadeado pela decisão da Justiça de inocentar dois policiais de Los Angeles, acusados de espancar o taxista negro Rodney King. Os tumultos tomaram conta das ruas de Los Angeles. Justificável: quando se trata de abordagem policial, negros e brancos têm visões radicalmente opostas. Segundo pesquisas do Instituto Pew Research, 68% dos negros americanos desconfiam da polícia e acham que ela comete abusos. Entre os brancos, esse índice é de 17%.
Outras estatísticas do sistema penal americano explicam essa desconfiança. Os negros são 13% da população total, mas formam 40% da população carcerária; 3% de todos os homens negros estavam presos no fim de 2013, enquanto a taxa entre brancos era de 0,5%. Em 2011, o pai de um de cada 15 negros americanos estava preso. Entre brancos, a proporção era de um para 111. O júri que inocentou Wilson era composto de nove brancos e três negros. “Para os negros americanos, e para boa parte das minorias, casos como esse deixam uma sensação de que o sistema lhes nega justiça”, afirma Noah Feldman, professor de Direito Constitucional em Harvard.
Os levantes em Ferguson evidenciam um cruel paradoxo da Presidência de Barack Obama: o primeiro presidente negro da história dos Estados Unidos não conseguiu aliviar a tensão racial no país. O incidente de Ferguson foi o mais grave das duas últimas décadas. “Uma nação com um presidente afro-americano e uma classe média negra significativa, ainda que em dificuldades, permanece profundamente dividida a respeito do sistema judicial, tal como estava décadas atrás”, escreveu o jornalista Michael Wines no New York Times.
Ao pedir calma aos manifestantes, Obama afirmou: “Temos um grande desafio como nação, encarar a desconfiança entre policiais e as comunidades negras pelo legado da segregação”. Obama também determinou que o Departamento de Justiça americano conduza investigações paralelas que poderão indiciar Wilson, uma atitude que serviu apenas para fustigar os conservadores americanos que concordaram com o veredicto do Missouri.
Assim como a morte de Emmett Till, um jovem de 14 anos sequestrado e assassinado por dois brancos em 1955, e o caso do taxista King em 1992, o caso da morte de Brown expõe como o racismo e a percepção de racismo constituem uma ferida profunda. Uma ferida que precisará mais do que o primeiro presidente negro da história americana para cicatrizar.
Fonte: Época
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