Cultura

‘Era Uma Vez Um Sonho’, com Glenn Close e Amy Adams, é raio-x dos EUA

“Era uma Vez um Sonho” toca aqui em duas questões quentes da atualidade

Ao longo de quatro décadas, a carreira de Ron Howard como diretor de cinema consistiu, essencialmente, em preservar sua carreira.

Seus filmes podem ser simpáticos -“Splash – Uma Seria em Minha Vida”, “Cocoon”-, apelar ao heroísmo -“Apollo 13”-, ao comercialismo -“O Código Da Vinci”-, à busca de prestígio -“Uma Mente Brilhante”. Tal diversidade também pode ser entendida como impessoalidade, digamos, mas não como incompetência.

Com “Era Uma Vez Um Sonho”, Howard -discípulo secundário, mas não vergonhoso da escola de Roger Corman- realiza seu filme mais ambicioso, em termos de análise da sociedade americana e, talvez, aquele que mais busca compreender os rumos recentes do país.

São dois os eixos que movem o filme -o sonho americano (já impresso no título brasileiro) e a família. O primeiro diz respeito ao mito do “país das oportunidades”, onde qualquer um pode chegar e fazer fortuna (ou se realizar, ou ser feliz -dá no mesmo).

O segundo, a um lugar de refúgio e permanência, que nos sustenta enquanto o mundo exterior agride.

Eles podem ser complementares (veja-se a máfia, instituição de defesa dos imigrantes, mas também lugar de oportunidade -embora criminal, o que é outra história). No caso do jovem J. D. a família tem papéis contraditórios.

Ela é apoio (em suas brigas de adolescência), lugar de conforto e orientação (sobretudo a avó -Glenn Close, de novo ótima), mas também um peso difícil de carregar (a mãe drogada -Amy Adams, muito bem). Em resumo, a família como instituição contradiz o princípio -tão profundo quanto o “sonho”- do individualismo americano.

É nessa teia que se vê preso J. D. Jovem pobre, tenta conseguir um estágio que permita a ele concluir os estudos de advocacia em Yale. Mas, às vésperas de uma entrevista decisiva, tem de atender pela enésima vez a mãe, Bev, ex-enfermeira que voltou a ter uma recaída nas drogas.

Bev está em crise a mais de dez horas de viagem de automóvel do local da entrevista que definirá o estágio (e portanto o futuro) do rapaz. O rapaz não tem alternativa a não ser socorrer a mãe, já que o hospital está dando alta a ela de forma evidentemente prematura.

“Era uma Vez um Sonho” toca aqui em duas questões quentes da atualidade -o alto custo do ensino universitário nos Estados Unidos (pais fazem poupanças por décadas para que filhos possam estudar) e seu sistema de saúde (caro e excludente).

Ron Howard não deixa dúvidas -a avó e a mãe de J. D. são provas vivas de que o valor de um homem depende de muitas coisas além dele. A meritocracia, digamos assim, é coisa um tanto relativa e põe em questão o sonho americano. O fracasso tem outras razões além da preguiça, da burrice, da falta de fé em Deus etc.

Assim como demonstra seu apego à família lançando mão de seus cartões de crédito para custear os caros tratamentos da mãe, J. D. se apoia, por sua vez, na namorada de origem indiana.
Promove, assim, o encontro dos dois polos -o passado com sua herança de fibra e fracassos, e o futuro, marcado pela esperança de triunfo da profissão e sorte no amor. Conseguirá conciliar essas forças opostas, a família e o indivíduo?

Se J. D. conseguirá é o que vereemos. Já Howard encontra uma maneira de conciliar duas continuidades, a da família como lugar de solidariedade e continuidade e a do sonho como ideal cuja permanência constitui -malgrado as adversidades- uma essência da sociedade americana.

ERA UMA VEZ UM SONHO

Produção EUA, 2020

Direção Ron Howard

Elenco Glenn Close, Amy Adams, Gabriel Basso

Onde Netflix

Avaliação Bom

FONTE: FOLHAPRESS

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Gomes Oliveira

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