A concepção que saiu da cabeça de Jodorowsky explorava possibilidades diversas e bem arriscadas para o cinema
O início do livro “Duna”, escrito por Frank Herbert em 1965, é narrado a partir da visão do jovem e inteligente Paul Atreides, parte da família real que comanda o planeta Arrakis. Diversas intrigas políticas põem em xeque o domínio desse território e de outros, porém, numa gigantesca guerra de famílias. Tudo isso sobre um pano de fundo futurista e distópico.
O quadrinho “Incal” parte da mesma ideia de um mundo futurístico. Segue, no entanto, os passos de John Difool, um detetive particular de quinta categoria considerado um fracassado por todos. A vida dele muda completamente ao encontrar o místico artefato Incal, que dá poderes especiais a quem o possui.
Mas o que as duas histórias têm em comum? Além de partilharem o gênero, da ficção científica, elas também se ligam ao cineasta, escritor, ator, poeta e psicólogo chileno Alejandro Jodorowsky, famoso por filmes como “A Montanha Sagrada” e “El Topo”, que exploram misticismo, surrealismo e o debate sobre a fé –temas que são recorrentes em toda a sua obra, aliás.
Isso porque Jodorowsky quis transformar “Duna” em filme muito antes de Denis Villeneuve, diretor à frente da aguardada adaptação do clássico com Timothée Chalamet no elenco e estreia prevista para setembro no Brasil.
Tudo começou nos anos 1970, quando o chileno já era reconhecido por seus trabalhos no cinema. O produtor francês Michel Seydoux, entusiasta das suas criações, abriu espaço para que ele realizasse o filme que quisesse. A escolha foi, sem pensar, “Duna”.
A concepção que saiu da cabeça de Jodorowsky explorava possibilidades diversas e bem arriscadas para o cinema da época, quando orçamentos como os dos filmes da Marvel ainda não eram tão comuns. Jodorowsky convidou Orson Welles e Salvador Dalí para atuar no longa, a banda Pink Floyd para realizar a trilha sonora e um grupo de desenhistas para pensar o lado visual da coisa. Um deles era o francês Jean Giraud, mais conhecido como Moebius, que concebeu alguns storyboards.
Mas nenhum estúdio de Hollywood quis bancar o longa que, além de muito caro, parecia pouco capaz de dar um bom retorno financeiro. O projeto acabou sendo adaptado num formato menos audacioso pela Universal nos anos 1980 –o estúdio deu a direção do longa a ninguém menos do que David Lynch.
O pesquisador Fabricio Trindade Pereira, mestre em estudos literários pela Universidade Federal de Minas Gerais, a UFMG, e estudioso do trabalho multimídia de Jodorowsky, destaca que o projeto de “‘Duna’ foi importantíssimo para os trabalhos seguintes de quem estava envolvido no projeto e para a própria história do cinema e dos quadrinhos”. Ele lembra “Alien “” O Oitavo Passageiro” e “Star Wars” como alguns dos filmes visualmente influenciados por esses planos que jamais saíram do papel.
Além disso, mesmo que “Duna” não tenha ido para a frente, Jodorowsky não deixou que os conceitos que criou morressem. Todo o visual concebido por Moebius representou a semente de um novo universo na cabeça do chileno, que desenvolveu, assim, o roteiro do que se tornaria o quadrinho “Incal”, agora relançado no Brasil pela editora Pipoca e Nanquim na íntegra, em três volumes.
Para as ilustrações, chamou novamente Moebius, que tinha participado da criação da editora Les Humanoïdes Associés e da revista Métal Hurlant, espaços importantes para a ficção científica e dos quais sairiam publicações de renome como “Lone Sloane”, de Philippe Druillet, e “Domu”, de Katsuhiro Otomo, autor do mangá “Akira”.
Os quadrinhos começaram a ser publicados em 1981 sob o título de “Uma Aventura de John Difool”. A série que completa o primeiro volume lançado pela Pipoca e Nanquim agora foi feita até 1988.
Depois disso, Jodorowsky continuou a lançar histórias ambientadas no universo de “Incal” até 2014. As publicações ganharam os títulos de “Antes de Incal”, “Depois de Incal” e “Incal Final” e, juntas, passaram a ser chamadas de Jodoverso. Além de Moebius, desenharam as HQs Zoran Janjetov e José Ladrönn.
Apesar da influência inegável de “Duna”, Jodorowsky ficou marcado por toda a sua carreira pelo fracasso do projeto. Em entrevista ao portal francês Le Point Pop, pareceu torcer o nariz para a adaptação de Villeneuve. “A fórmula é idêntica a tudo que é feito em todos os lugares, a iluminação, a atuação, tudo é previsível.” Mesmo assim, ele disse esperar que o filme seja um grande sucesso.
Villeneuve, por sua vez, disse não ter se inspirado na visão de Jodorowsky ao construir a sua versão do universo.
Questionado sobre as diferenças entre a sua obra e a do chileno em entrevista ao portal Fandom, ele disse que o filme de Jodorowsky é “muito singular”. “Seria essa a visão que eu teria para Duna? Nunca. Tenho certeza disso porque ele [Jodorowsky] é muito único.”
IncalAutor: Alejandro Jorodowsky. Trad.: Pedro Bouça. Ed.: Pipoca e Nanquim. R$ 129,90 (324 págs.)
FONTE: FOLHAPRESS
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