Com a criminalização de contratos de artistas por prefeituras, não é loucura pensar que todo o setor se prejudique
Num trecho da tragédia musical “Gota D’Água”, de Paulo Pontes e Chico Buarque, o monólogo “Veneno”, a protagonista Joana diz: “Eles pensam que a maré vai, mas nunca volta/ Até agora eles estavam comandando/ o meu destino e eu fui, fui, fui, fui recuando,/ recolhendo fúrias. […] Quando eles virem invertida a correnteza,/ quero saber se eles resistem à surpresa/ quero ver como eles reagem à ressaca”.
A passagem, criada por um dos artistas mais perseguidos pelo bolsonarismo, ilustra bem a reversão da sorte que vivem alguns dos artistas que, em 2018, se declararam bolsonaristas de primeira ordem depois que o cantor Zé Neto —da dupla com Cristiano— criticou artistas que usam verbas da Lei Rouanet e provocou a cantora Anitta por sua tatuagem.
Gusttavo Lima, a dupla Bruno e Marrone, Wesley Safadão e outros nomes mais conhecidos onde “o agro é pop” ganharam os holofotes pelos cachês cobrados de municípios do interior do país que, em alguns casos, chegavam a superar o novo teto de captação da Rouanet —R$ 500 mil— para verbas individuais.
Até o último dia 12 de maio já eram, segundo levantamento do UOL, 36 cidades –24 delas no Mato Grosso– investigadas pelo Ministério Público naquela que passou a ser conhecida como a “CPI do Sertanejo”.
É preciso dizer também que a prática em si não configura crime e há inclusive uma lei, de 1993, que regula a prática. É mister apurar caso a caso. Criminalizar o caso por princípio, como se fez com a Lei Rouanet, pode causar um grande mal para a produção cultural e artística do país.
Segundo levantamento feito por esta Folha, 51,8% dos gastos dos governos em cultura vinham das cidades e 26,8% dos estados em 2018. A pesquisa teve como base os dados de despesas empenhadas do Sistema de Informações Contábeis e Fiscais do Setor Público, Siconfi, do Tesouro Nacional.
Já os dados do IBGE de 2014, presentes na mesma análise, mostravam que 54,6% das cidades tinham políticas culturais ou desenvolviam alguma ação ou programa voltado ao turismo cultural. Festas e manifestações tradicionais e populares estavam presentes em mais de 80% dos municípios.
Estados e municípios mitigaram, assim, danos de uma eventual concentração de recursos em grandes cidades como o Rio e São Paulo, embora os mecanismos da própria lei previssem formas de acesso à cultura para quem recebesse o incentivo.
Com a Lei Aldir Blanc, aprovada em 2020, no entanto, houve notórios avanços em áreas críticas da Rouanet.
A primeira diz respeito ao volume de recursos, na ordem R$ 3 bilhões, uma vez que esse montante não veio do orçamento, mas de valores parados no Fundo Nacional de Cultura, FNC.
A segunda é que a lei previa o investimento direto, não incentivado, acabando com aquela crítica de que o financiamento da cultura brasileira era determinado por departamentos de marketing.
Em terceiro lugar, os recursos eram enviados às secretarias de cultura dos estados e municípios após a formulação de editais, chamadas públicas e prêmios voltados à produção cultural e artística local, que previam compensações sociais e prestações de contas, como no caso da Rouanet. Acabava-se, assim, com a crítica pertinente de que o financiamento federal da cultura se concentrava, via Lei de Incentivo, nos grandes centros urbanos.
Com essa criminalização por princípio da contratação dos artistas sertanejos, não é loucura pensar que todo o setor artístico e cultural —responsável por 2,6% do PIB— saia prejudicado, justamente num momento em que artistas e produtores tentam reverter os vetos integrais às leis Aldir Blanc 2, que injetaria R$ 15 bilhões na cultura em cinco anos, e à Lei Paulo Gustavo, que investiria R$ 3,86 bilhões, a maior parte dos recursos no audiovisual.
A situação deve ser ainda mais difícil para os profissionais da cultura de pequenos municípios. Sem o respaldo legal de uma lei como a Aldir Blanc —e com a Rouanet à mercê dos caprichos da Secretaria Especial da Cultura desde sua última reforma em fevereiro—, as secretarias locais certamente estarão mais vulneráveis ao Ministério Público ou ao governo federal.
Os municípios perdem, assim, uma fonte de receita, turismo, lazer e até mesmo de prevenção a outros males, como a saúde mental da população. E o país, como um todo, perde um pouco mais de si mesmo.
FONTE: FOLHA DE SÃO PAULO – FOLHA.COM
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