Legislação preenche vácuo entre crime de estupro e atentado violento ao pudor, mas vítimas ainda enfrentam dificuldades para encaminhar denúncias
Uma ano após ser sancionada, a lei de importunação sexual, que define como crime a prática de um ato libidinoso contra alguém sem o consentimento da pessoa, preenche um vácuo legislativo. Mas, ao mesmo tempo, não garante a proteção integral das vítimas de abuso nem incentiva a conscientização entre abusadores.
“A criminalização isolada sem outras medidas alternativas não soluciona sintomas mais graves e agudos. Questões de fundo que proporcionam a continuidade da cultura de estupro no país não foram trabalhadas”, afirma Maíra Pinheiro, advogada criminalista e integrante da Rede Feminista de Juristas. “Há uma construção social que leva os homens a se sentirem autorizados a violar o corpo das mulheres e isso precisa ser repensado.”
Dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação mostram que entre agosto de 2017 e julho de 2018 foram registradas pela SPTrans 72 reclamações referentes a assédio sexual no sistema de transporte de São Paulo. Entre os meses de agosto de 2018 e agosto de 2019 foram registradas 81 denúncias. Os números, ainda que específicos de usuários de ônibus, revelam um conjunto de problemas e precarização nos dados.
De acordo com Pinheiro, a vítima continua a enfrentar uma série de entraves para denunciar o autor do ato libidinoso. Além disso, segundo ela, os obstáculos no encaminhamento da denúncia persistem. “Os sistemas não são integrados”, diz. “No Metrô, a polícia militar não entra, é um segurança quem faz o encaminhamento a Delegacia de Polícia. Na CPTM, não há uma delegacia interna, os casos são encaminhados às mais próximas. Nos ônibus, as ocorrências são atendidas pela polícia militar.”
Segundo a advogada, o fato de três tipos diferentes de agentes de segurança darem encaminhamento às denúncias em um sistema que não é integrado dificulta o registro, a compilação de dados e a identificação do abusador. “Na prática, o que acontece é que se não houver um caso em flagrante dificilmente será investigado ou encaminhado à delegacia”, afirma.
A pena para quem executa um crime de importunação sexual varia entre um e cinco anos. “Quando a penalidade é inferior a dois anos e o réu for primário, ele pode se beneficiar da suspensão do processo ou da pena. No segundo caso, ele terá um antecedente criminal”, explica Pinheiro. “Quando ele obtém esse benefício passa a ir uma vez por mês ao Fórum Criminal para assinar um papel, mas não tem um estímulo à conscientização. Talvez a única etapa que promova a reflexão seja a audiência.”
A Lei Maria da Penha, que cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, possui uma rede interdisciplinar de acolhimentos às vítimas. Especialistas acreditam que a lei de importunação sexual deveria ser pensada nos mesmos moldes. “O direito penal não é pensado para deixar a vida das mulheres mais segura. Ela é pensada por homens e para homens para solucionar problemas de homens”, diz a advogada.
Embora a legislação tenha sido criada para superar um vácuo legislativo, a principal fragilidade é que não há, na prática, uma abordagem interdisciplinar para trabalhar com o autor do abuso. “Não existe um serviço voltado a questões de saúde mental do autor. A política criminal no Brasil é baseada exclusivamente no encarceramento”, afirma Pinheiro. “São poucas as medidas alternativas em que o autor do crime consegue refletir ou aprender algo.”
A advogada Marina Ruzzi, do escritório Braga & Ruzzi, que atua em causas que envolvem desigualdade de gênero e direitos LGBTI+, afirma que leis como a de importunação sexual precisam de um tempo para serem implementadas. “Muitas pessoas sofrem assédio de desconhecidos e acreditam que, em função disso, não devem fazer a denúncia”, diz. “Há uma cultura de silenciamento e para desencorajar mulheres que tentam registrar reclamações. Mas é importante que elas se sintam confortáveis em denunciar.”
Para Ruzzi, um ano após a lei ter sido sancionada, é possível afirmar que houve mudança do ponto de vista da sensação de segurança às vítimas. Em seu escritório, por exemplo, o número de mulheres que recorre a ela para relatar casos de importunação sexual cresceu 25% em comparação ao mesmo período antes da vigência da lei. “Quando uma mulher relatava um caso de importunação sexual, havia poucas saídas”, diz a advogada. “Era um trabalho muito maior para responsabilizar os órgãos e o agressor individualmente.” Segundo ela, a legislação possui um efeito preventivo. “A pessoa sabe que aquela conduta pode levá-la à prisão e tenderia, com isso, a não fazê-la para não se prejudicar. Mas, na prática, não significa que funcione.”
As mudanças, porém, não podem se restringir ao âmbito penal. “É importante que o direito ofereça outras respostas, mas mudar a mentalidade da sociedade não é algo que se consiga rapidamente.” Nesse sentido, para ela, um ano é pouco tempo para se fazer uma avaliação. “Um inquérito em São Paulo leva, em média, um não para ser concluído. A maioria dessas denúncias deve chegar agora ao Judiciário.”
Mudança na legislação
O projeto de lei foi elaborado a partir de casos de grande repercussão, sobretudo, o de um homem que ejaculou no pescoço de uma moça quando ambos estavam em um ônibus na avenida Paulista, em São Paulo, em 2017. Antes disso, porém, em 2009, o crime de estupro passou a abranger todos os atos libidinosos praticados mediante violência e grave ameaça.
Com isso, as demais situações em que não havia consentimento, grave ameaça e não se caracterizava como estupro de vulnerável ficavam em um limbo jurídico ou eram consideradas atentado violento ao pudor. “Era uma lesão de direitos que não dava conta da gravidade da situações”, diz Pinheiro.
A lei de importunação sexual criminaliza, ainda, a divulgação de cena de estupro e estabelece causas de aumento de pena para “crimes sexuais contra vulnerável e crimes contra a liberdade sexual”, na definição da lei. Duas das causas de ampliação da pena são estupro coletivo e estupro corretivo. O primeiro ocorre quando há dois ou mais agressores e, o segundo, quando a violência sexual ocorre “para controlar o comportamento social ou sexual da vítima”, cometida principalmente contra a população LGBTI+.
Os casos de grande repercussão jogaram uma luz sobre o buraco legislativo. “Foi necessário criar um meio termo, nem tão brando nem tão grave quando o estupro, para tipificar os demais atos libidinosos contra mulheres sem a ausência do consentimento”, explica a advogada.
FONTE: R7.COM
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