Marcada por entrelaçamento entre política e negócios, região é a mais representada no vazamento sobre paraísos fiscais. Vários políticos são cobrados a dar explicações, mas, para analistas, consequências são improváveis.
A divulgação dos Pandora Papers representa um tsunami político para as elites da América Latina. A região é a mais representada na maior checagem de dados já feita sobre paraísos fiscais: quase 100 mandatários políticos de 18 nações latino-americanas são conectados com negócios offshore – ou seja, transações em oásis financeiros fora da jurisdição do país de origem.
Tais práticas aparentemente são difundidas até mesmo nos mais altos patamares da elite politica. Dos 35 atuais ou antigos presidentes cujos nomes constam dos documentos vazados, 14 são da região. As revelações devem ser especialmente desagradáveis para três chefes de Estado em exercício: Sebastián Piñera, do Chile, Guillermo Lasso, do Equador, e Luis Abinader, da República Dominicana.
Entre os cerca de 2 mil brasileiros listados como sócios de empresas offshore, o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, são os nomes mais proeminentes. Na terça-feira (05/10), tanto a Câmara dos Deputados quanto o Senado Federal aprovaram requerimentos para pedir explicações a Guedes.
O ministro da Economia é dono de uma offshore sediada nas Ilhas Virgens Britânicas, identificada nos Pandora Papers. Segundo a pasta que ele chefia, a empresa teria sido declarada à Receita Federal e à Comissão de Ética Pública antes de ele assumir o cargo. Mas críticos apontaram possível conflito de interesse na manutenção de uma offshore ativa pelo ministro.
Envolvimento das elites descarta consequências sérias
Ao todo, 2,9 terabytes de documentos sobre transações potencialmente corruptas foram vazados para o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ, na sigla em inglês). Este se encarregou de sua análise e divulgação, no escândalo que ficou conhecido como Pandora Papers.
Falando à DW, o jornalista venezuelano e membro do ICIJ Ewald Scharfenberg frisa a importância das revelações para a América Latina. “Numa região marcada pela desigualdade, esses documentos comprovam a lacuna entre os cidadãos normais, respeitosos da lei, e os que conseguem acesso aos paraísos fiscais e o utilizam para seus fins.”
No entanto, justamente pelo fato de uma grande parcela da elite política estar envolvida nessas práticas, é pequena a probabilidade de os altos escalões adotarem medidas contra essa “economia paralela”, conclui o jornalista investigativo.
O ceticismo de Scharfenberg não é injustificado. No início de agosto, os mais famosos prevaricadores latino-americanos dos Pandora Papers, os presidentes chileno e equatoriano, se submeteram a perguntas da imprensa. Indagado sobre paraísos fiscais, Piñera pontificou a favor de erradicação de todos eles, pois muitas vezes seriam utilizados para falcatruas ilegais, negócios moralmente duvidosos ou sonegação de impostos.
O mandatário chileno declarou-se convicto de que “os paraísos fiscais devem desaparecer para que as transações financeiras internacionais se tornem mais transparentes”. A expressão facial de Lasso, que escutava calado, deixou margem para interpretações.
Entrelaçamento de política e negócios é praxe
Após as últimas revelações, Sebastián Piñera, um dos homens mais ricos do Chile, negou imediatamente ter violado qualquer lei. De acordo com os Pandora Papers, a família do presidente detém a maior participação no controvertido projeto de construção Dominga, no norte do país; seus filhos e esposa administram a fortuna familiar nas Ilhas Virgens. Numa declaração, o bilionário assegurou não ter participado nem estar informado sobre as transações em questão.
Também seu homólogo equatoriano, Guillermo Lasso, se apressou em reafirmar no Twitter a própria inocência: ele não teria imóveis nos paraísos fiscais, sua grande fortuna seria resultado da atuação no Banco de Guayaquil, de que é o maior acionista.
Mas o que se revela agora sobre a América Latina não é surpresa, muito menos para os cidadãos locais, observa Günther Maihold, vice-diretor do Instituto Alemão para Política Internacional e Segurança (SWP) e especializado em assuntos latino-americanos: “As elites políticas da região sempre buscaram suas oportunidades no estrangeiro, não em seus países.”
Também Sabine Kurtenbach, do Instituto Giga de Estudos Latino-Americanos, sediado em Hamburgo, está longe de surpreender-se, já que o entrelaçamento de cargos políticos com negócios privados é muito difundido na região.
“No fim das contas, coisas como transparência e prestação de contas dependem das relações de poder entre as elites do momento, a sociedade civil e a Justiça.” Só uma sociedade civil forte e um Judiciário independente podem cuidar para que a elite política respeite as leis vigentes, acrescenta.
“Para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei”
Agora, as autoridades fiscais dos diferentes países têm que verificar o grau de ilegalidade de um volume enorme de documentos. Tanto Kurtenbach quanto Maihold concordam que nem sempre é fácil definir se uma ou outra prática é legal ou ilegal.
Em muitos casos, porém, deve tratar-se de capital intencionalmente ocultado do fisco. O problema é que muitos caminhos tomados pelo dinheiro são, ou inicialmente parecem ser, legais, graças às leis que os próprios políticos envolvidos promoveram ou mesmo decidiram.
“Para os amigos, tudo. Para os inimigos, a lei” é uma frase atribuída ao antigo presidente brasileiro Getúlio Vargas. No entanto, ela se aplica igualmente a muitos de seus atuais colegas de cargo na América Latina, reconhecem Kurtenbach e Maihold.
Como aponta a especialista do Instituto Giga, no momento a região atravessa um retrocesso dramático nos setores de democracia e Estado de direito: “As leis só são aplicadas quando se pode instrumentalizá-las politicamente.” Mudar isso exigiria uma reforma do acesso à educação e a redução da desigualdade social, afirma.
A julgar pelas experiências dos últimos anos, é bem possível ocorrerem processos fiscais e exigência de pagamento de impostos sonegados, prevê Maihold. Porém condenações em massa ou consequências penais são antes improváveis.
O problema é que “uma autonomia do direito basicamente não é reconhecida na América Latina”, e uma virada para melhor só seria possível se os eleitores da região voltassem a mostrar mais confiança nas instituições, e menos em indivíduos, considera o especialista.
FONTE: DEUTCHE WELLE
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