A holandesa Zahira Lieneke Mous foi a única mulher que aceitou mostrar o rosto no programa; brasileiras afirmaram ter medo e vergonha de se identificar
João Teixeira de Faria é um médium brasileiro conhecido no mundo todo como João de Deus. Há mais de 40 anos, ele faz atendimentos espirituais no município de Abadiânia, no interior de Goiás. A cidade, de menos de 19 mil habitantes, recebe até 10 mil pessoas por mês para atendimentos – em sua maioria, estrangeiros. Os relatos sobre suas cirurgias espirituais e curas, incorporando diversas entidades como Dom Inácio, se espalharam pelo mundo.
O Conversa com Bial desta sexta-feira, 7/12, acolheu depoimentos de mulheres que foram em busca de tratamento espiritual, mas se sentiram abusadas sexualmente pelo médium da Casa Dom Inácio de Loyola. O medo de uma possível “retaliação espiritual” contribuiu para que a maioria das mulheres ficasse em silêncio:
“Ele dizia: ‘Se você não fizer o que eu estou falando, a sua doença vai voltar'”, disse uma das brasileiras, que não quis se identificar.
“Tinha muito medo deles mandarem espíritos ruins, da minha vida se tornar miserável, de não conseguir dormir”, afirmou a holandesa Zahira Mous.
No total, o apresentador e a repórter Camila Appel ouviram, individualmente, relatos de 10 pessoas com histórias parecidas. Por questão de tempo, a direção mostrou apenas quatro desses depoimentos. As brasileiras que aparecem no programa não quiseram se identificar por medo e vergonha.
A coreógrafa Zahira Lienike Mous foi a única mulher que aceitou mostrar o rosto. Antes de gravar o programa nos Estúdios da TV Globoem São Paulo, a holandesa conversou com Pedro Bial pela internet. Acostumada a visitar o Brasil desde os 17 anos – por causa de um tio que mora em Minas Gerais -, ela ouviu falar de João de Deus pela primeira vez em 2014. Precisando de ajuda espiritual, pesquisou tudo sobre o médium antes de visitar a “Casa”.
Zahira afirmou ter presenciado milagres e curas no local, onde foi treinada por João de Deus e atuou como sua assistente em cirurgias físicas. A coreógrafa lembrou do que sentiu em sua primeira consulta:
“Me senti segura em ir sozinha. Entrei na fila e me deram um tipo de rabisco numa nota”.
“Senti uma energia forte nesse papel”.
Depois de uma semana, retornou para poder realizar três desejos. Um deles era se “curar” de um abuso sexual sofrido no passado. Após ser atendida pela entidade, foi orientada a ter uma consulta particular com João em seu escritório:
“É um cenário bem bizarro. Você, de certa forma, se sente especial, acha que vai receber a cura”.
O cômodo conta com um banheiro enorme, onde cabe um sofá. Levada para o local, ficou sem reação quando o médium a colocou de joelhos de frente para ele:
“Abriu a calça, colocou a minha mão no pênis dele e começou a movimentar a minha mão”.
“Estava em choque. Enquanto isso, ele continuava falando da minha família e disse que eu deveria sorrir”.
“Depois, ele se limpou, me levou ao escritório, abriu um armário de pedras preciosas e mandou escolher a que eu mais gostasse.”
“Não sei quantos dias depois, ele me puxou de novo para o banheiro. Um padrão parecido, mas ele deu um passo adiante: me penetrou por trás”.
Zahira levou quatro anos negando a si mesmo o que tinha acontecido em Abadiânia e nunca havia comentado nada com ninguém até resolver contar sua história em uma rede social. Saber que poderia estar ajudando muitas mulheres foi o que lhe impulsionou a encarar tamanha exposição:
“Era inegável que eu precisava lidar com aquilo”.
“Eu realmente espero poder ajudar outras mulheres a saírem dessa sombra. Porque nós não precisamos sentir vergonha”.
“Ele tem que sentir vergonha. E todas as pessoas que o protegem para que ele continue fazendo o que faz”.
A holandesa comentou as críticas que tem recebido por ter ficado em silêncio por tanto tempo e revelou o motivo que a levou a fazer a denúncia só agora:
“Se fosse só eu, eu que engula, porque ele está curando milhares de pessoas, certo? Mas agora eu sei que ele está abusando de centenas de mulheres e meninas”.
“Sei que muitas mulheres foram afetadas e por isso que estou aqui”.
Durante o programa, Bial ouviu ainda duas brasileiras que também afirmam terem sido assediadas por João de Deus. A primeira procurou a “Casa” em busca da cura de um problema de visão do filho em 2009, frequentou o local durante anos, até precisar de ajuda para superar um divórcio e ser atendida no escritório do médium, onde sofreu os abusos em 2013:
“Ele disse que sabia que eu estava lá pelo divórcio, que ia fazer uma limpeza energética em mim”.
“Disse que eu precisava daquela energia que só viria daquela maneira. Quarenta e cinco dias depois, voltei sozinha e a entidade me pediu para ir vê-lo novamente. Fez tudo de novo”.
“Me pediu para voltar no dia seguinte de manhã, e ficou bravo quando cheguei com um homem da minha família”.
A segunda brasileira procurou a “Casa” após ser diagnosticada com câncer de mama. Na companhia do marido, fez uma cirurgia espiritual comunitária no começo de 2018 e precisou voltar um mês depois para fazer uma “revisão”. Em abril deste ano, ao retornar, foi sem o companheiro e acabou sendo orientada a procurar João de Deus em seu escritório:
“Ele disse que estava quase curada, que eu tinha que prometer a ele que não podia dizer a ninguém sobre o processo de cura”.
“Achei estranho, mas estava muito desesperada. Tinha muita confiança nele”.
“Senti o membro dele nas minhas nádegas, ele comprimindo meu corpo. Comecei a chorar e pensava: ‘Como vou sair daqui?’”.
Coach espiritual, Amy Biank é uma americana que atuou como guia de estrangeiros em Abadiânia, de 2002 a 2014. Nas 48 visitas feitas à “Casa”, ela estima que tenha levado mais de 1.500 pessoas para conhecer o local. Amy disse que nunca foi uma seguidora do médium e que seu trabalho não era o de ajudar a encontrar a cura:
“Era levar pessoas que estavam em peregrinação para aprendizados, para compreender a espiritualidade”.
Apaixonada pelo Brasil, a americana riscou a Casa Dom Inácio de Loyola de sua rota após flagrar João de Deus forçando uma mulher a fazer sexo oral nele:
“Ouvi um grito de socorro e entrei. Ele pediu para eu fechar os olhos e sentar. Vi que ele estava com as calças abertas, ela ajoelhada e ele com uma toalha no ombro”.
“Ela não queria fazer sexo oral nele, foi por isso que gritou. Sentei no sofá e fechei os olhos, porque estava doutrinada a achar que tudo era divino e especial. Ela gritou de novo, eu abri os olhos e ele parou”.
“Ele sabia que eu tinha visto! Mais tarde, veio na minha pousada, parou na minha mesa e disse: ‘Quando sou João, sou somente um homem! Um homem tem suas necessidades’”.
Após o episódio, recebeu ameaças de morte e escreveu uma carta para seu advogado alertando sobre o ocorrido:
“Não falaram de energias malignas porque não funcionaria comigo”.
A coach espiritual decidiu contar o que viu aos funcionários do local com o objetivo de tentar fazer com que João de Deus parasse de cometer tais atos em seu escritório:
“A única saída eram os trabalhadores da ‘Casa’ não permitirem que ele ficasse sozinho com as pessoas”.
“Alguns choraram (…) Mas ouvi muito que, no Brasil, o que acontece atrás das portas não é da conta de ninguém”.
A produção do Conversa com Bial entrou em contato com assessoria de imprensa da Casa de Abadiânia para que João de Deus tivesse a oportunidade de dar sua versão dos fatos e apresentou à assessoraEdna Gomes o teor das alegações. Depois da solicitação de entrevista, a assessoria do médium pediu um tempo para dar uma resposta. A exibição do programa foi adiada. Nesta sexta, o programa voltou a tentar contato com a assessoria e Edna enviou a seguinte nota oficial:
“Há 44 anos, João de Deus atende milhares de pessoas em Abadiânia, praticando o bem por meio de tratamentos espirituais. Apesar de não ter sido informado dos detalhes da reportagem, ele rechaça veementemente qualquer prática imprópria em seus atendimentos”.
Como é possível ver no vídeo abaixo, João de Deus foi, sim, informado dos detalhes da reportagem. Nosso convite para que ele responda às alegações está mantido.
FONTE: G1.COM COM TV GLOBO
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