Camisas do Brasil, ambiente decorado em verde e amarelo, cerveja, petisco e a voz de Galvão Bueno na televisão. O cenário poderia ser comum. E é, até certo ponto. A diferença é o abismo de realidade que separa a comunidade de Jandira, no município de Iranduba, na grande Manaus, no Amazonas, dos bares e das festas em geral pelo país em dia de jogo da Seleção. As cheias dos rios Negro e Solimões costumam durar de maio a julho, e a Copa do Mundo acontece bem no meio desse período. Das 64 comunidades ribeirinhas de Iranduba, a maioria está completamente alagada. Estrada, casas e até carro estão debaixo d’água. A canoa virou o meio de transporte principal. Mas nada disso impediu que um grupo de 20 amigos se reunisse na casa da Família Araújo para torcer pelo Brasil na partida contra Camarões. A união, mais do que nunca nesse caso, faz a força.
O GloboEsporte.com alugou uma voadeira, embarcação movida a motor com estrutura e casco de metal, e foi ver de perto a festança. O acesso ao Porto Solimões, distante 10km da capital, já foi complicado. Chegando ao local, foi necessário caminhar por tábuas de madeira, com risco de cair na água, para alcançar o ponto onde seria iniciado o transporte aquático. O visual compensou o trabalho, mas as cenas seguintes durante a viagem de 25 minutos preocuparam. Eram muitas as casas sem condições de serem habitadas por conta da cheia.
A Família Araújo, que vive de agricultura, já sofreu muito com essas cheias da região. Foi vítima delas em diversas oportunidades. A mais grave para eles foi a de 2009. A água chegou a ficar 60cm acima do assoalho. Não estavam preparados para aquilo. Perderam móveis, roupas, toda a produção. Perderam a paz.
– O prejuízo foi grande, tanto material como no trabalho. É como se tivesse ficado desempregado. Não tinha como trabalhar – disse Raimundo “Preto”, segundo filho do falecido líder da comunidade, Renato “Do Jandira”.
A solução de imediato na época foi usar madeira para levantar a cozinha, que era menor e separada da casa, portanto o trabalho seria mais rápido. A família foi dividida. Uns ficaram meses na casa do filho mais velho de Renato, Reinaldo, incluindo todas as crianças, e outros ficaram na própria cozinha, espaço de apenas 27 metros quadrados onde tiveram ainda a companhia de alguns vizinhos que não tinham condições de ir para terra firme. No fim do mesmo ano, para não reviver o drama, pagaram carpinteiros para construir uma nova casa. Antes que ela ficasse pronta, porém, Seu Renato veio a falecer de cirrose hepática, aos 47 anos, deixando quatro filhos e a esposa, Maria José.
Durante o jogo do Brasil, a foto de Renato do Jandira estava na parede da casa, junto da família e dos amigos. Era como se todos acreditassem na presença dele. A Seleção foi um fator de união entre todos, apesar das nítidas dificuldades.
– Apesar de a gente morar numa região distante, quase que isolada e num período de cheia, a gente aproveita esse momento para representar a seleção brasileira. Nós somos patriotas também. Apesar de precisar de canoa para se locomover, todo mundo se junta para poder assistir ao jogo. O nosso objetivo aqui é ver o Brasil ser campeão. Nós juntamos toda essa galera para ver a Seleção conquistar o Hexa – disse Raimundo, que assumiu a função de líder da família e também participa das decisões da comunidade.
Na atual cheia do Rio Solimões, a Família Araújo perdeu toda a sua produção de maracujá e mamão, suas principais fontes de renda. Mas eles não estão mais “desempregados” como antes. Mais experientes, dão seu jeito para plantar e vender principalmente repolho, pepino, cheiro verde e cebolinha, cujo cultivo é mais rápido. As outras 244 famílias da comunidade fazem o mesmo e encontram soluções. Por isso, a população de Jandira no geral não vê motivo para sair de lá.
– Só 10% querem sair daqui. Tem uma proximidade de Manaus, o ônibus demora só uma hora, tem escola local. A cheia prejudica, mas as pessoas já pensam logo no período que vem depois, pois o solo fica mais fértil. A água barrenta do rio carrega muita coisa e renova a terra – contou Raimundo.
A partida do Brasil não teve toda a Família Araújo em casa. A matriarca, dois filhos e todos os netos estão em Iranduba e Manaus para fugir da cheia. Mas quem estava lá vibrou, torceu, gritou, vaiou, reclamou. Como todo brasileiro. Teve pausa para o tradicional peixe com farinha. Não poderia faltar. Era pacu pescado na hora. E logo voltaram para mais vibração com a goleada canarinha por 4 a 1 sobre Camarões, resultado que classificou a Seleção para as oitavas de final, onde enfrentará o Chile. A comemoração foi especial: um pulo coletivo no rio.
– Foi uma alegria muito grande poder comemorar essa vitória do Brasil. O Brasil une toda a população em torno da Copa do Mundo. A gente fica feliz – afirmou José Augusto, morador da comunidade do Jandira “porque quer”, como gosta de dizer, e vereador do município de Iranduba.
A Família Araújo, a comunidade de Jandira e todas as outras que vivem nas mesmas condições dão exemplo diário de como viver sem reclamar. Mesmo nas adversidades, que são muitas, agradecem todos os dias pelo que têm. E o futebol ajuda a esquecer os problemas, é verdade. É um esporte que ajuda a unir, que é motivo de fortes emoções, que é a verdadeira paixão nacional. Para os ribeirinhos, pena que o campo mais próximo está completamente alagado. Só dá para enxergar o travessão. Mas só até o fim de julho. Depois disso, a alegria transmitida pela bola voltará a ser vivenciada por eles. E não só pela televisão.
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