Cultura

Série retrata Nara Leão como artista à frente do seu tempo, da bossa nova à política

“A bossa nova me dá sono”, diz Nara Leão numa entrevista exibida em “O Canto Livre de Nara Leão”, série documental que acompanha a trajetória de uma das cantoras mais importantes da música brasileira.

Ainda adolescente, a artista testemunhou –e fez parte– da gênese da bossa nova, nos encontros que reuniam os maiores ícones do gênero em seu apartamento, mas rompeu com o movimento antes mesmo de lançar seu primeiro disco.

De certa forma, Nara Leão estava sempre um passo à frente do seu tempo. “Sempre tive uma inquietação de achar que ela não tem o reconhecimento na cultura brasileira que ela merecia”, diz Renato Terra, diretor da série, cujos cinco capítulos chegam ao Globoplay nesta sexta (7). “Hoje a gente reconhece grandes artistas do século 20 –como Maria Bethânia, Elis Regina, Elza Soares, Carmen Miranda–, mas acho que a Nara merecia estar junto com essas artistas.”

Em “O Canto Livre de Nara Leão”, essa tese é desenvolvida com uma vasta pesquisa de imagens de arquivo, entrevistas e documentos que levam o espectador para os anos 1960 ou 1970, quando ela viveu seu auge. A série tenta explorar a artista em toda sua complexidade –da inquietação artística à coragem política, passando pela quebra de paradigmas no comportamento.

“Pela intuição e pela coragem, ela abria caminhos para a música brasileira –e não individualmente para ela. Todo mundo na cultura brasileira reconhece e tem uma certa gratidão por isso. Mas sua personalidade não a permitia se vangloriar por isso.”

A série mostra como ela nunca batalhou pelo título de “musa da bossa nova”, que ganhou muito graças às famosas cenas, então incomuns, do joelho à mostra quando tocava violão. Os encontros com gente como Roberto Menescal –seu grande amigo até a morte–, Ronaldo Bôscoli, Tom Jobim e João Gilberto, entre outros, ganham vida no documentário, quando ela aparece mais como mascote do que como musa do movimento.

Nara era a garota que recusava maquiagem e circulava curiosa entre os compositores. Sabia todas as letras de cor e tocava um violão visto como “de homem”, como ela diz na série. “Até hoje não entendi como eu era musa, sendo que todo mundo me espinafrava. Os meninos não me davam muita colher de chá, achavam que eu cantava mal […].”

De “garota bossa nova”, no canto e no cabelo Chanel, ela foi deixando de lado a expressão daquela juventude conforme se encantava pelo samba do morro, apresentado a ela por Carlos Lyra, e incorporou no repertório composições de gente como Nelson Cavaquinho e Cartola. Dali em diante, não parou mais.

“Ela tinha um jeito de se vestir e uma postura muito modernos para a época. Revelou grandes compositores, como Chico Buarque e Edu Lobo. Gravou um disco cantando músicas de Erasmo e Roberto Carlos quando grande parte da música ainda torcia o nariz para eles. Foi uma das primeiras artistas brasileiras a se manifestar politicamente. Fez um espetáculo fundamental logo depois do golpe militar, que foi o ‘Opinião’.”

Mesmo tímida, Nara estrelou o espetáculo histórico ao lado de João do Vale e Zé Keti, e foi ela quem chamou Maria Bethânia para lhe substituir no papel depois de uma viagem à Bahia –dando um empurrão fundamental para o tropicalismo. “Acho que a Nara é tropicalista antes do tropicalismo. Essa coisa de pegar ritmos brasileiros –baião, marchinha– e juntar com o que estava se fazendo na vanguarda internacional, ela personificou isso. Tinha uma alma tropicalista antes de o tropicalismo acontecer.”

Vinda de uma família de classe média, Nara era bem aceita em círculos artísticos que iam dos intelectuais da zona sul do Rio aos sambistas do morro, mas teve um famoso desafeto –Elis Regina. “O Nelson Motta falou isso, mas acabou não entrando na série, que era uma briga em que só uma queria brigar. A Elis falava mal da Nara nos jornais e ela não respondia.”

Nas entrevistas, ela levantava discussões sobre questões femininas que eram tabu na época. “Desde o começo da carreira, a Nara falava sobre o uso da pílula anticoncepcional, a importância do divórcio e coisas sobre a liberdade feminina que foram muito importantes.”

Nara também foi uma das primeiras artistas a se posicionar publicamente sobre política, numa entrevista um tanto inocente em que debochou do Exército –e quase acabou presa. “Tem uma coragem muito grande ali. Mesmo depois de entender as consequências, de receber ameaças de prisão dos militares nos jornais, da repercussão toda, ela manteve as palavras, não recuou.”

A perseguição política e o sucesso estrondoso de “A Banda”, música de Chico Buarque famosa na voz de Nara, acabaram contribuindo para a saída dela do país, num exílio em que a cantora se afastou da música para se dedicar à maternidade. Morreu em 1989, após anos tratando um tumor no cérebro.

“A Nara era um farol dentro da música brasileira. E por isso ela é respeitada por todo mundo. Sempre que quisemos marcar entrevista para o documentário, as pessoas diziam, ‘se é para falar da Nara, eu topo’. É porque ela era um farol sem querer brilhar. Sem querer jogar os holofotes para cima dela.”
*
O CANTO LIVRE DE NARA LEÃO
Produção: Conversa.doc
Direção: Renato Terra
Quando: 7 de janeiro
Onde: Globoplay

FONTE: FOLHAPRESS

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Gomes

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