Uma operação realizou buscas nas sedes de quatro empresas que abastecem os quartéis e nas residências dos sócios, em Alegrete e Uruguaiana, no Rio Grande do Sul. Advogado critica ‘espetáculo’
Numa inspeção de rotina nas licitações dos quartéis do Exército, em maio de 2018, chamou a atenção do promotor Soel Arpini, da Procuradoria de Justiça Militar de Bagé, no Rio Grande do Sul, o preço que uma unidade militar de Jaguarão pagou pela linguiça fornecida ao quartel: R$ 56 o quilo. A investigação levou à descoberta de um suposto esquema de fraudes em licitações para aquisição de alimentos envolvendo 50 unidades das Forças Armadas, 48 delas naquele Estado.
Nesta terça-feira, 10, uma operação do Ministério Público Militar (MPM), Polícia Federal e Exército realizou buscas nas sedes de quatro empresas que abastecem os quartéis e nas residências dos sócios, em Alegrete e Uruguaiana. Não houve buscas em unidade militares.
De acordo com a Polícia Federal, oito mandados de busca e apreensão expedidos pela Justiça Militar foram cumpridos, mas não houve prisões que, no entanto, podem ser decretadas conforme o andamento das investigações. “A ação tem por objetivo a coleta de provas que complementem as informações já obtidas na investigação e que possibilite a identificação de todos os envolvidos e a participação de cada um na perpetuação do delito”, informou, em nota, a PF.
Foram alvos as empresas M.A.Moresco Filho, Bidinha & Moresco, J.D. dos Santos Rezes e E.R. Comércio, além de seus proprietários, que em cinco anos, faturaram cerca de R$ 25 milhões vencendo licitações supostamente fraudulentas. “Esse é um valor público, está no Portal da Transparência. Vamos agora apurar qual seria o valor real e o que foi superfaturado”, disse.
Conforme o promotor, no caso da linguiça, o preço máximo estipulado para a licitação era de R$ 28, o dobro da cotação do produto no mercado. “Foi feita a cotação com três empresas que deram valores mais altos para justificar o preço pago, de R$ 56. Agora vamos investigar qual a participação dos militares que fizeram a compra, aceitando pagar valor quatro vezes superior ao do mercado”, disse.
Em outro caso, os procuradores apuraram que uma unidade militar de Bagé comprou mil quilos de hambúrguer, entregue no dia 26 de março deste ano. “Duas semanas depois, fomos verificar e encontramos apenas 50 quilos do hambúrguer, mas era de uma gramatura menor que a especificada e de qualidade inferior. Ao checar as notas, verificamos que o produto havia sido entregue com o prazo de validade já vencido.” Havia também entrega de produtos diferentes dos licitados. “Houve entrega de abacate no lugar de banana, bebida láctea em vez de iogurte, ou seja, a empresa entregava produtos diversos dos contratados e de valor inferior.”
Segundo ele, na apuração, foi constatado que as licitações eram disputadas sempre pelas mesmas empresas, que têm o mesmo endereço eletrônico, telefone e contador. “A Bidinha & Moresco é de um casal que tem um filho que dirige e gerencia a M. A. Moresco. A terceira é de uma pessoa que já foi funcionária da Bidinha e abriu a empresa, ao que tudo indica, apenas para participar das licitações em conluio. Trocas de e-mails evidenciam que, quando uma empresa não tinha a quantidade total de um produto, recorria à outra para completar a entrega.”
Também foi apurado, com a quebra do sigilo bancário das empresas investigadas, que elas movimentavam conjuntamente valores altos, fazendo a troca de numerário entre si. A investigação apontou o casal Meireles Alves Moresco e Katia Lucia Bidinha como donos da Bidinha & Moresco, enquanto o filho deles, Meireles Filho, é proprietário da M. A. Moresco. A ex-funcionária da Bidinha, Joice Daiana dos Santos Rezes, mesmo após ter aberto sua empresa, J. D. dos Santos Rezes, em 2014, continuou recebendo valores da antiga empregadora como se ainda fosse funcionária.
Conforme o procurador, o material recolhido na operação será objeto de análise para apurar também a participação de militares no esquema. “Não tem como a empresa utilizar essas práticas sem a participação do militar. A questão é saber se eles visavam também algum lucro pessoal.” O MPM não confirmou se todas as unidades investigadas são do Exército ou se há, entre elas, unidades de outras forças. Também não informou a localização das unidades que não estão em território gaúcho, alegando que as investigações prosseguem.
A apuração do MPM encontrou indícios de fraudes como superfaturamento e direcionamento de licitações, além de possíveis crimes de estelionato, lavagem de dinheiro, fraude contábil, falsidade ideológica, formação de quadrilha e corrupção. Durante as investigações, foram abertos três inquéritos e instauradas duas ações criminais em que figuram como denunciados quatro militares, além de dois empresários.
Em nota, o Comando Militar do Sul, com sede em Porto Alegre, informou que “tem conhecimento das investigações em questão, pois já estão sendo realizadas pelo Ministério Público Militar há algum tempo e, como instituição idônea e transparente, tem contribuído a fim de esclarecer e prestar as informações necessárias às investigações.”
Ainda segundo a nota, “a Instituição não compactua com qualquer tipo de irregularidade ou ilícito praticado por seus integrantes. Qualquer conduta, dentro da Força, que desvie do que estabelecido legalmente será apurado e, se constatadas irregularidades, seus responsáveis responderão de acordo com a legislação em vigor.”
A Bidinha & Moresco Ltda, com sede em Uruguaiana, dedica-se ao comércio atacadista de produtos alimentícios, conforme registro no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas. A atividade é a mesma da M.A. Moresco Filho, que também tem sede em Uruguaiana – as duas empresas forneceram o mesmo número de telefone nesse cadastro.
A E.R. Comércio de Alimentos tem sede em Viamão, no mesmo Estado e se dedica ao comércio varejista de mercadorias, com predominância de alimentos. O porte é de microempresa. Comércio de alimento é também o ramo da J.D. dos Santos Rezes, sediada em Uruguaiana. A reportagem entrou em contato telefônico e pelos e-mails disponíveis com as quatro empresas, mas não obteve retorno.
‘Mais um grande espetáculo’, critica advogado
O advogado Bruno Menezes, que defende Joice Daiane dos Santos, disse que a “Operação Química” – denominação dada à ação do MPM e da PF do Rio Grande do Sul – “se tratou mais de um grande espetáculo do Ministério Público Militar do que de provas concretas”.
Segundo ele, as três empresas, tanto a de Joice com a dos Moresco, ocupam um centro de distribuição de alimentos construído pela prefeitura de Uruguaiana como incentivo ao desenvolvimento industrial da cidade. “É uma área de mais de mil metros quadrados que se tornou a sede das três empresas, mas elas ocupam áreas delimitadas, têm seus próprios freezers e nunca houve conluio entre elas, tanto que jamais disputaram as mesmas licitações. Temos a documentação de tudo.”
Conforme o defensor, sua cliente havia sido intimada para depor no quartel na manhã quarta-feira, 11. “Causa estranheza que, um dia antes, tenha sido feita a operação. A nosso ver, o interesse do MPM é fazer um grande espetáculo.”
FONTE: ESTADÃO CONTEÚDO
Add Comment