Pesquisa aponta que o acesso ao tratamento de esgoto seria capaz de tirar 635 mil mulheres da pobreza, a maioria negra e jovem
A empregada doméstica Júlia Carvalho Souza, de 42 anos, convive há 15 anos com o cheiro forte do esgoto a céu aberto que corta a rua em que vive na comunidade de Paraisópolis, na zona sul de São Paulo. O odor é tão intenso que ela tem o hábito de lavar as roupas e fechar as janelas instantaneamente, na tentativa de evitar que o cheiro do córrego invada sua casa. “Tem mosquito e barata, morro de medo de contaminação.”
Júlia é uma das 26,9 milhões de mulheres brasileiras que moram em casas sem coleta de esgoto e têm a rotina profundamente afetada pela ausência da limpeza urbana. De acordo com o estudo inédito “O saneamento e a vida da mulher brasileira”, realizado em parceria pelo Instituto Trata Brasil, BRK Ambiental, e com o apoio das Nações Unidas, divulgado neste mês, uma em cada quatro mulheres no país vive em situação precária do ponto de visto do acesso ao saneamento básico. “Isso impacta em tudo, a roupa fica com mau cheiro, afeta a saúde e em dia de chuva a rua fica intransitável”, diz.
Uma das piores lembranças de Júlia é quando os filhos, hoje adolescentes com 16 e 20 anos, eram crianças e tinham de sair de casa para ir à escola. “Me lembro de sair com o mais novo no colo e a mais velha de mão dada comigo e juntos atravessávamos o córrego com o esgoto a céu aberto”, diz. “Eu levava uma roupa extra para eles trocarem ao chegar na escola e não ficarem sujos e com mau cheiro.”
Pela primeira vez, um levantamento revelou que as mulheres, assim como Júlia, são as principais afetadas pela falta de acesso à rede de tratamento de esgoto. As consequências vão desde o impacto na saúde e no bem-estar até o afastamento no mercado de trabalho. Os números revelam uma realidade ainda mais grave: cerca de 1,6 milhão de mulheres viviam em moradias sem banheiro de uso exclusivo em 2016, 15 milhões de brasileiras não recebiam água tratada em suas residências e 12 milhões tinham acesso à rede de distribuição, porém de forma insatisfatória.
Júlia vive em um sobrado e afirma que além de seu esgoto desembocar diretamente no córrego de sua rua, o de todos os vizinhos também tem o mesmo destino. “Agora, os moradores asfaltaram e as pessoas levam menos sujeira do córrego para as casas.” A empregada doméstica afirma, porém, que ainda hoje tem todos os problemas decorrentes da falta de saneamento em sua rua.
Ela afirma que manifestou alergias na pele e problemas respiratórios. “A casa fica toda fechada e com cheiro de mofo. Estamos sempre com ventilador ligado. Minha irmã tem rinite quando vem me visitar.” Em dias de chuva, Júlia não consegue sair de casa. “Temos que esperar a água baixar. Tiro os sapatos toda vez que chego com medo de me contaminar.”
A pesquisa demonstra também que a falta de água nas casas afeta mais diretamente as mulheres porque 83,3% delas afirmaram se dedica ao trabalho doméstico, enquanto que esse percentual entre os homens é de 65,5%. Em média, essas atividades ocupam 20 horas semanais da mulher, quase o dobro das 10,7 horas por semana utilizadas pelos homens.
Em sua vizinhança, Júlia concorda que as mulheres são as mais prejudicadas pela ausência do saneamento básico. “São as mães que saem para buscar os filhos nas escolas e tem que passar pelos córregos, as mães que tem de vigiar para a criança não brincar nas sujeiras das ruas.” Ela trabalha na Lapa, na zona oeste da cidade, e diz que já chegou a faltar no trabalho diversas vezes em dias de chuva.
O afastamento das atividades por diarreia ou vômito, também detectados pela pesquisa como frequentes em regiões que não possuem saneamento básico, prejudicam o tempo de estudo e trabalho das mulheres. Os dados mostram que foram comprometidas mais de 83 milhões de horas de estudo e mais de 172 milhões de horas de trabalho remunerado ou não da população feminina brasileira.
Por mulher, os números representam, segundo o estudo, 2,4 horas de trabalho remunerado por ano entre as que estão empregadas e 0,9 horas por ano de atividades não remuneradas, como trabalho voluntário, atividades domésticas e cuidados com familiares. Em 2016, houve uma perda de 3,3 horas de estudo e 5,7 horas de descanso e lazer das mulheres em função desses afastamentos por doenças decorrentes da falta de saneamento.
O estudo aponta ainda que o acesso à água tratada e ao tratamento de esgoto seria capaz de tirar imediatamente 635 mil mulheres da pobreza, a maior parte delas negras e jovens. O economista e pesquisador responsável pelo estudo, Fernando Garcia de Freitas, afirma que o impacto desse problema no tempo produtivo das mulheres é 10% superior ao dos homens.
“Temos um retrato evidente de como a falta de água e esgoto impacta a criança, a jovem, a trabalhadora, mãe e a idosa, impedindo a melhoria de vida e aprofundando as desigualdades sociais.” Para o infectologista Artur Timerman, a falta de saneamento básico compromete o futuro das próximas gerações. “É ela quem, na maioria das vezes, tem a preocupação com a saúde familiar”, diz.
O estudo apontou que meninas de até 14 anos são as maiores vítimas de afastamentos por diarreias e vômitos decorrentes da falta de água e esgoto tratados. O índice é 76% maior do que a média em outras idades. No caso da mortalidade, o déficit de saneamento é mais perigoso para mulheres idosas.
No caso da renda, a pesquisa calculou ainda que o saneamento traria um acréscimo de R$ 321 ao ano, em média, para cada mulher brasileira, o que representaria um ganho de R$ 12 bilhões ao ano para a economia do país. Não é o que se observa no dia a dia, porém.
Enquanto o Brasil se distancia da meta estipulada pelo Plano Nacional de Saneamento Básico, lançada em 2013, que prevê a universalização do abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto até 2033, o maior desejo dos filhos de Júlia é se mudar para uma rua longe de córregos com esgoto a céu aberto. “Meu filho que trabalhar para comprar uma casa bem longe desse problema.”
FONTE: R7.COM
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