Funcionários dizem que há perseguição, gritos e constrangimento; Anvisa não quis se manifestar sobre as
Perseguição, gritos, constrangimento e pressão são relatados por servidores da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) que se dizem vítimas ou testemunhas de casos de assédio moral e sexual que estariam ocorrendo na agência. Com exclusividade, o R7 conversou com oito servidores e ex-servidores que afirmam que o clima de medo e de constante apreensão tem se intensificado nos últimos anos, desde que Antonio Barra Torres assumiu a direção do órgão, em 2020. Procurada, a Anvisa não quis se manifestar.
Agora, os casos chegaram ao MPTCU (Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União), que determinou que sejam adotadas medidas para apuração de eventuais irregularidades na gestão de pessoas da agência. A representação, a que o R7 teve acesso com exclusividade, foi assinada nesta sexta-feira (9) pelo subprocurador-geral Lucas Rocha Furtado.
Na representação, o subprocurador menciona que as denúncias “levantam dúvidas acerca da maneira como a atual direção da agência lida com a gestão de pessoas nas coordenações da Anvisa” e que “a prática de assédio na administração pública configura flagrante violação ao princípio da moralidade, previsto expressamente no capítulo do artigo 37 da Constituição”.
“Quando praticado no âmbito da administração pública, o assédio gera a percepção, na sociedade, de que as instituições estatais não se pautam em valores morais nem são conduzidas segundo elevados padrões de conduta”, diz a representação.
A reportagem teve acesso a uma série de e-mails trocados com a Comissão de Ética da Anvisa, em que são relatados casos de assédio moral por parte de chefes. Ao menos duas denúncias de assédio envolvendo funcionários que atuam na presidência da agência também estão sob investigação da CGU (Controladoria-Geral da União).
Ao todo, em 2023 foram relatados oficialmente à CGU sete casos de assédio moral e um caso de assédio sexual na Anvisa. Esse número é mais que o dobro do registrado em 2022, quando foram reportados três casos de assédio moral e nenhum caso de assédio sexual.
No entanto, segundo relatos de funcionários da agência, o ambiente de trabalho é marcado pelo medo, o que dificultaria a denúncia. Eles alegam que a liderança da Anvisa parece proteger supostos assediadores e destacam que poucas medidas têm sido tomadas em resposta às denúncias. Das dez últimas decisões do Comissão de Ética da Anvisa, oito foram arquivadas sem chegar a uma conclusão. Uma delas resultou em uma investigação em um processo separado, enquanto outra foi resolvida por meio de um acordo.
“A cultura e o clima organizacional da Anvisa não são saudáveis. É um ambiente que adoece as pessoas. Já vi gestores diminuindo o trabalho de técnicos, e, quando alguém denuncia, é perseguido. Há uma tentativa de silenciar quem denuncia, de fazer com que a pessoa que sofreu assédio desista de denunciar abusos”, comentou uma servidora que concordou em falar com a reportagem sob a condição de manter sua identidade em sigilo.
Um dos funcionários relata que casos de assédio chegaram ao gabinete da presidência da Anvisa, mas nenhuma providência teria sido tomada. “Toda a diretoria e o gabinete sabiam sobre o assédio sexual, e existia um risco real de ter acontecido algo mais grave com alguém dentro da Anvisa. Mas a atitude sempre foi de silenciar, de abafar o caso”, relata.
O caso a que o servidor se refere é o de Paulo César do Nascimento Silva, ex-assessor especial da presidência da Anvisa, preso em 12 de junho de 2023 dentro das instalações da agência. Ele ocupava um cargo comissionado desde 2019, responsável pelas relações governamentais. Ele foi exonerado após prisão e condenação por crime de estupro. Na época, a agência informou que desconhecia as denúncias e que a prisão foi uma consequência de fatos que ocorreram antes de ele exercer o cargo de confiança na presidência da agência.
Essa versão, porém, é questionada por alguns funcionários. Os relatos são de que Paulo César frequentemente carregava uma arma dentro da agência e exibia comportamento assediador em relação às mulheres, persistindo em abordagens inadequadas, especialmente com as mais jovens.
“Ele convidava as mulheres para tomar cerveja depois do trabalho, com comportamento claramente assediador, e ficava insistindo com as colegas, inclusive abordando nos corredores. Em uma ocasião, uma colega pediu ajuda para que eu não a deixasse sozinha com ele. Já era no final do dia e ficamos após o expediente, esperando ele ir embora, e ele só foi quando entendeu que ela não iria ceder”, relata.
A reportagem ainda obteve acesso a um boletim de ocorrência, datado de 2021, que acusa o ex-assessor da Anvisa de perseguir uma mulher no Distrito Federal. Esse incidente ocorreu antes da prisão de Paulo César, mas enquanto ele já exercia cargo de confiança dentro da agência.
Também na época da prisão, o grupo “Nós por Elas” denunciou que havia assédio sexual dentro da agência, alegando que os gestores tinham conhecimento dos casos, mas não tomaram medidas para investigar e punir os responsáveis.
“Algumas de nós fomos obrigadas a suportar situações de assédio e importunação sexual, tanto do senhor Paulo César quanto de outros colegas, por medo de retaliação profissional, perseguição, agressão e outros tipos de violência. Embora muitos gestores tenham mostrado solidariedade com as vítimas, nenhuma denúncia formal foi feita devido aos motivos mencionados”, declarou a entidade.
Com a repercussão do caso, a agência criou um comitê de prevenção a assédio moral e sexual. Mas os servidores também reclamam que não há fluxo entre as áreas responsáveis por apurar os casos. “Foi uma coisa feita às pressas, para ‘inglês ver’ e para dar uma resposta à sociedade naquele momento de crise. Foi mais uma ação para o público externo do que para o interno”, declarou um servidor.
Uma ex-servidora da agência diz que também teve pedidos de socorro ignorados por diretores. “No meu caso, houve uma tentativa de proteger uma pessoa que estava cometendo um crime em um órgão público, e eu percebi que queriam abafar, teve uma tentativa de minimizar as agressões”, relata. “O que eu tenho a dizer, e que é muito importante, é que quem está sofrendo assédio precisa falar, nem que seja para um colega. Ter compartilhado meu caso com uma colega que trabalhava comigo na época me ajudou muito”, comenta.
Os funcionários mencionam frequentemente o receio de sofrer represálias. Alguns relatam ter sido transferidos para diferentes áreas ou perdido seus cargos depois de denunciarem assédio por parte de seus superiores.
“Existe muito receio em fazer uma denúncia formal, especialmente porque são pessoas que trabalham diretamente com a presidência. As pessoas temem represálias no ambiente profissional, e o fato de assessores portarem arma só aumenta esse medo”, explicou.
O Sindicato Nacional dos Servidores das Agências Nacionais de Regulação (Sinagências) também se manifestou sobre as denúncias. Em nota, o sindicato disse que “lamenta a ineficiência das gestões em coibir esse tipo de crime – que, nos últimos anos, infelizmente, têm se tornado cada vez mais comum”.
“O agravamento do clima organizacional das Agências, a falha das direções em garantir um ambiente de acolhimento aos servidores que foram vítimas de assédio, e a falta de diálogo tornaram as Agências Reguladoras um terreno fértil para a ação de assediadores”, diz a nota.
A reportagem buscou um posicionamento da Anvisa em relação aos casos, porém, a agência respondeu que “por ora, não irá se manifestar”. Tentativas de contato com Antonio Barra Torres, presidente do órgão, foram realizadas, mas não houve resposta às ligações nem às mensagens enviadas.
A reportagem não conseguiu contato com a defesa de Paulo César e perguntas sobre o caso dele também não foram respondidas pela agência. O espaço permanece aberto para manifestações.
Vinculada ao Ministério da Saúde, a Anvisa é responsável por criar normas e regulamentos e dar suporte para todas as atividades da área no país. A agência também é quem executa as atividades de controle sanitário e fiscalização em portos, aeroportos e fronteiras. Esse trabalho, alerta servidores, está ameaçado por uma gestão militarizada.
Atualmente, quem comanda a agência é o médico da Marinha Antonio Barra Torres, no cargo desde 2020, por escolha do ex-presidente Jair Bolsonaro. Antes de assumir a Anvisa, ele desempenhava um papel de contraponto ao ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, no Planalto. Mandetta ficou no cargo até abril de 2020, e Barra Torres acabou sendo oficialmente nomeado chefe da Anvisa em outubro de 2020, embora já estivesse exercendo interinamente a função desde dezembro de 2019.
Logo no início da pandemia, Barra Torres agiu alinhado às posições de Bolsonaro e chegou a participar de um ato que pregava o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF). Era março de 2020, auge da pandemia, e Barra Torres desfilou ao lado de Bolsonaro sem máscara e diante de aglomeração de pessoas, apesar das recomendações no sentido contrário. Dias depois, e após ser bombardeado por críticas, ele disse que se arrependeu da conduta. A partir daí, passou a se distanciar do presidente e a defender a “autonomia da agência”.
No entanto, essa atitude é vista como contraditória por servidores da Anvisa. Isso porque, ao longo de seu tempo na agência, apesar de ter mantido certa distância midiática da família Bolsonaro, Barra Torres tem se cercado de assessores com ligações militares, a maioria sem experiência na área de regulação.
É o caso do próprio diretor-adjunto da Anvisa, Juvenal de Souza Brasil Neto. Ele tem o poder de substituir Barra Torres em certas ocasiões, mas antes de ser nomeado à agência nunca havia trabalhado com regulação. No currículo disponível no site da Anvisa, Juvenal menciona que atuou como secretário de Obras de Areal (RJ) de 2004 a 2011. No entanto, o termo de exoneração revela que ele desempenhou o cargo de fiscal de obras, com contratos firmados entre 2009 e 2011. De acordo com o documento, ele foi encarregado da fiscalização de uma obra de ciclovia, da reforma de uma estação e da construção e adaptação de quadras esportivas.
Além disso, a formação do diretor-adjunto de Barra Torres, na área de engenharia civil e fiscalização de obras, difere significativamente da formação dos diretores-adjuntos das outras quatro diretorias da Anvisa, os quais são especialistas em saúde, controle sanitário e regulação de mercado.
O R7 questionou a Anvisa sobre a formação técnica de Juvenal de Souza Brasil Neto e outros assessores militares, mas a agência não quis se manifestar. A reportagem não conseguiu localizar o contato de Brasil Neto.
Servidores também relatam que, nos bastidores, Barra Torres atuou para persuadir diretores no caso da liberação do agrotóxico Paraquat, que saiu do mercado depois de ser associado ao mal de Parkinson e falência de múltiplos órgãos, como pulmão, rins e fígado. Inicialmente, a Anvisa estabeleceu a proibição do Paraquat em 2017, depois de quase uma década de debates sobre o assunto.
Naquele momento, ficou estipulado um prazo até 2020 para que o setor se adequasse. Posteriormente, a data limite foi estendida por mais um ano, permitindo que os produtores utilizassem os estoques adquiridos. O lobby do agronegócio, no entanto, pressionava para que a permissão do uso do produto fosse estendida por mais um ano.
A votação ocorreu em 15 de setembro de 2020. Marcus Aurélio Miranda de Araújo, então diretor-substituto da Anvisa e ex-parceiro de Barra Torres, votou seguindo a recomendação técnica da Anvisa, que era a favor da proibição do produto.
Com isso, o resultado foi 3×2 a favor da proibição, contando com os votos dos diretores Romison Rodrigues Mota e Alessandra Bastos Soares. Barra Torres e Meiruze Freitas votaram a favor da permissão da substância. Antes, Meiruze havia expressado oposição ao agrotóxico, mas acabou mudando seu voto.
Barra Torres perdeu a votação, e, menos de dez dias depois, em 24 de setembro de 2020, Jair Bolsonaro retirou a indicação de Marcus Aurélio à diretoria da Anvisa. Até então, ele já atuava como diretor-substituto, mas ainda esperava o aval do Senado para assumir o cargo de diretor efetivo.
Nos bastidores, há um entendimento entre os diretores de que apenas os assuntos com consenso são incluídos na pauta de votações. Em 2023, por exemplo, ocorreram 375 votações unânimes.
A chefia de Barra Torres está em jogo também por causa de um julgamento no TCU (Tribunal de Contas da União) que analisa se os nomeados para o cargo de diretor-presidente de agências reguladoras podem ter um mandato de 5 anos, mesmo que já tenham ocupado anteriormente a Diretoria Colegiada das agências por mais de 5 anos, como é o caso de Barra Torres. O processo deveria ter sido julgado na última quarta-feira (7), mas a decisão foi adiada pela quarta vez por falta de consenso sobre o tema no TCU.
A controvérsia ocorre pela interpretação da Lei 13.848 de 2019, chamada de Lei Geral das Agências. Essa lei estabelece que os diretores dos órgãos reguladores devem ter um mandato máximo de cinco anos e não podem ser reconduzidos ao cargo.
No entanto, há uma interpretação de que quando um diretor já atuou como diretor-geral da mesma agência, seus mandatos não podem ser contados separadamente. Caso o TCU decida por essa interpretação, Barra Torres deve deixar o cargo em 4 de agosto de 2024 e não em 21 de dezembro de 2024.
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