O fim da perda automática da cidadania brasileira de quem obtém outra nacionalidade por vontade própria, aprovado pelo Congresso Nacional, deve trazer segurança jurídica para milhões de brasileiros que moram fora do país. A esses cidadãos, será permitida a manutenção de direitos como o de votar, de ter propriedades no Brasil e de manter o passaporte brasileiro.
A alteração, no entanto, levanta o debate quanto a questões de extradição, o que pode exigir propostas complementares. Segundo avaliação geral, a mudança compatibiliza o Brasil com a tendência global de múltipla nacionalidade.
Para que comece a valer, a proposta de emenda à Constituição (PEC) que facilita a nacionalidade múltipla ainda precisa ser promulgada. A matéria foi aprovada em 2021 no Senado e em 12 de setembro deste ano na Câmara. “Vamos trabalhar para que o presidente do Congresso Nacional promulgue o mais rapidamente possível a legislação. Mas, de qualquer maneira, não há mais dúvidas de que nós temos tranquilidade jurídica no caso dos brasileiros que têm dois passaportes”, afirmou ao R7 o senador Carlos Viana (Podemos-MG), relator da proposta no Senado. Por ser uma PEC, o texto não precisa de sanção presidencial.
Relatora da matéria na Câmara, a deputada Bia Kicis (PL-DF) afirmou ao R7 que mais de 2,5 milhões de pessoas devem ser beneficiadas diretamente com a aprovação do texto. “O brasileiro que está lá fora, assim como o familiar dele que está aqui, fica bem mais tranquilo. O brasileiro sai em busca de uma vida melhor, e não é fácil ser estrangeiro”, declarou. O número leva em conta tanto pessoas que podem pleitear a dupla nacionalidade como aquelas que querem recuperar a condição à qual renunciaram anteriormente.
De acordo com o texto, a perda da nacionalidade brasileira ficará restrita a duas possibilidades:
• quando for cancelada por sentença judicial em razão de fraude relacionada ao processo de naturalização ou atentado contra a ordem constitucional e a democracia; ou
• quando houver pedido expresso pelo cidadão ao governo brasileiro, ressalvadas situações que acarretem apatridia, ou seja, quando a pessoa não tem sua nacionalidade reconhecida por nenhum outro país.
Entenda o que muda na prática
Especialista em direito internacional público, a advogada Ana Flávia Velloso esclarece que, antes mesmo da PEC, a nacionalidade estrangeira por critério familiar nunca acarretou a perda da nacionalidade brasileira. “Se você tem um avô italiano ou português, essa nacionalidade é originária. A nacionalidade por naturalização é que acarretava a perda da nacionalidade brasileira”, detalhou.
A naturalização decorre de um vínculo social, não familiar. Os critérios variam de acordo com as regras de cada país, mas consideram, por exemplo, o direito de pedir a nacionalidade quando se vive muito tempo naquele determinado local ou quando a pessoa se casa com algum cidadão. Era essa a nacionalidade que, ao ser adquirida, acarretava a perda do status no Brasil.
“Milhares de brasileiros expatriados se naturalizaram no exterior sem a consciência de que perdiam a nacionalidade originária brasileira. O caso Claudia Hoerig, no Supremo Tribunal Federal (STF), sobre a extradição de uma pessoa que, por ter se naturalizado americana, deixou de ser considerada brasileira nata, acendeu um alerta na comunidade brasileira no exterior. E muitas pessoas deixaram de requerer a nacionalidade de outro país por receio de deixar a condição de brasileiro nato”, disse Velloso.
Foi justamente o caso de Hoerig que embasou a apresentação da PEC. Em 2019, ela foi condenada nos Estados Unidos pelo assassinato do marido, que ocorreu em 2007. Refugiada no Brasil, ela foi extraditada para os Estados Unidos, apesar de a Constituição proibir a extradição de brasileiro nato para responder por crimes no exterior. Isso só aconteceu porque o STF entendeu que ela deixou de ser brasileira por vontade própria para se tornar unicamente cidadã americana antes do crime.
Houve um tempo em que o direito internacional defendia o princípio de que a nacionalidade deveria ser única. Não se defende essa ideia no planeta multiconectado em que vivemos. A tendência é a pluralidade de vínculos nacionais entre os cidadãos do mundo. A PEC tem o mérito de trazer segurança jurídica às pessoas que, daqui por diante, não mais temerão deixarem de ser consideradas brasileiras natas ao adquirirem uma segunda nacionalidade
Advogado especializado em direito empresarial, Fernando Canutto elenca situações em que a dupla nacionalidade pode trazer complicações do ponto de vista fiscal e em relação a deveres em ambos os países em que a pessoa possui nacionalidade. Confira ponto a ponto abaixo:
1. Consequências de abdicar da nacionalidade brasileira
Direitos — A perda da nacionalidade brasileira implica na perda de direitos como votar e ser votado nas eleições brasileiras, acessar determinados cargos públicos exclusivos para brasileiros, entre outros.
Deveres — Por outro lado, certos deveres associados à cidadania, como o serviço militar obrigatório (para homens), não seriam mais exigidos.
2. Impostos e tributações
Duas possibilidades — A tributação de brasileiros residentes no exterior é diferente daquela de não residentes. Dependendo da situação e da relação tributária entre o Brasil e o país de residência, a perda da nacionalidade poderia simplificar questões fiscais ou levar a complicações.
Simplificação — Imagine um cidadão brasileiro que vive nos Estados Unidos e possui rendimentos em ambos os países. Brasil e EUA têm um acordo para evitar a dupla tributação de renda. Se essa pessoa mantém a nacionalidade brasileira ao se tornar cidadão americano, ela pode aproveitar melhor as regras do tratado, para evitar ser tributada duas vezes sobre a mesma renda. Isso pode simplificar o processo de declaração de impostos, já que ela pode utilizar créditos fiscais em um país para compensar os impostos pagos no outro.
Complicação — Um exemplo possível é a tributação de ativos no exterior e saída definitiva do Brasil. Suponha que um cidadão brasileiro que adquiriu cidadania europeia decida se mudar definitivamente para a Europa, mas ainda possui ativos no Brasil. Como cidadão brasileiro, ele estaria sujeito às regras fiscais brasileiras para declaração desses ativos. Além disso, ele seria obrigado a apresentar uma declaração de saída definitiva do país à Receita Federal, sob pena de continuar sendo tributado no Brasil sobre seus rendimentos.
A manutenção da cidadania brasileira nesse caso pode complicar as obrigações fiscais, já que ele terá que continuar a apresentar declarações no Brasil e ficar atento às variações cambiais para a conversão dos rendimentos e poderá estar sujeito à tributação diferenciada para residentes e não residentes, além das obrigações fiscais no país europeu onde agora reside.
2. Implicações da PEC
Na prática — A pessoa não perderá os direitos associados à cidadania brasileira, mesmo após obter outra nacionalidade. Isso significa que ela pode continuar votando, ter propriedades no Brasil e manter um passaporte brasileiro.
Benefícios — Oferece mais segurança jurídica, especialmente para quem tem bens no Brasil. Facilita a mobilidade internacional, já que a pessoa pode usar os passaportes de ambas as nacionalidades, conforme as vantagens oferecidas em diferentes contextos.
3. Necessidade e contexto global
A PEC pode ser vista como um avanço necessário, refletindo uma visão mais globalizada e reconhecendo a complexidade das identidades nacionais no mundo atual. Muitos países já adotam posturas flexíveis em relação à dupla ou múltipla nacionalidade, tornando a PEC alinhada com uma tendência global.
4. Gargalos potenciais da PEC
Conflitos de lealdade — Em teoria, a dupla nacionalidade pode levar a conflitos de lealdade, especialmente em situações de crise diplomática entre os países.
Complexidade fiscal — Ter duas cidadanias pode complicar a situação fiscal do indivíduo, dependendo das regras de tributação de cada país e dos tratados fiscais entre eles.
Obrigação em dois países — A pessoa pode ter deveres em ambos os países, como votar ou prestar serviço militar (se exigido por ambos os países e não houver acordos bilaterais que evitem duplicidade).
Extradição — Como visto no caso de Claudia Hoerig, questões de extradição podem se tornar mais complexas, dependendo do entendimento jurídico sobre a nacionalidade predominante do indivíduo.
Questões legais — Pode complicar questões de herança, direitos de propriedade e outros assuntos legais no Brasil.
FONTE: R7.COM
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