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Nordestina que vive na Catalunha é a primeira brasileira eleita para o parlamento espanhol pelo partido separatista

Segundo Maria Dantas, crescimento da extrema direita a estimulou a se candidatar. ‘Com o VOX, as pessoas saíram do armário’, diz

Primeira deputada brasileira no Parlamento espanhol, Maria das Graças Carvalho Dantas, fará 50 anos no dia 21 de maio, data da constituição das novas Cortes Gerais (Câmara e Senado). Dantas ocupará uma das cadeiras que o partido Esquerda Republicana da Catalunha (ERC) — que reúne independentistas e pessoas favoráveis à escolha da região — obteve nas eleições gerais deste domingo.

Filha de trabalhador do comércio e enfermeira, nascida em Aracaju – “Sou nordestina cabra da peste, daquela que pega a peixeira e coloca no meio dos dentes, discípula de Maria Bonita” – Dantas, recém-formada em Direito, vendeu seu Fiat Uno branco e fez, em 1994, as malas rumo à Espanha para cursar uma especialização em Direito Ambiental. No Brasil, ficou seu filho Tiago Lee, hoje com 31 anos, engenheiro e escritor, fruto de sua primeira relação. Dantas, que era delegada adjunta da Polícia Civil de Sergipe, nunca chegou a exercer como advogada.

– Quando cheguei à Espanha era “a” imigrante sem papéis. Passei uns 15 ou 16 anos de vários perrengues por aqui. Trabalhei como empregada doméstica, babá, passeando com cachorro, ajudando idosos, garçonete, professora de português. Saía das aulas do doutorado e ia limpar latrina. Tinha que alimentar minhas duas filhas – conta Dantas, mãe de Victoria e Natalia, hoje com 23 e 21 anos, que nasceram em Barcelona, de sua segunda relação, também com um brasileiro.

Nos últimos anos, trabalhou como auxiliar administrativa no departamento financeiro de uma empresa, para onde pretende voltar quando acabar sua legislatura. Dantas também se mantém ativa em movimentos sociais, aos quais se uniu ao chegar à Espanha, contra a xenofobia, o racismo, o fascismo, a LGTBIfobia, e pela imigração e os direitos humanos.

– Este ativismo me deu algumas ferramentas que posso utilizar na via institucional para combater a extrema direita. Isso, unido ao meu conhecimento sobre o que os imigrantes vivem ao chegar aqui fizeram com que eu aceitasse esta candidatura – explica Dantas.

Como nasceu o sentimento independentista na senhora?

Foi um processo. A maioria dos brasileiros que chega aqui não entende o que acontece na Catalunha. O único que eu conhecia daqui era o filósofo Ramón Llull [Mallorca, século XIII, conhecido por ser um dos pioneiros a escrever em catalão], porque estudei no curso de Direito. E que Barcelona tinha sido sede olímpica. Eu sabia que se falava outro idioma, mas pensava que era algo residual. Tive um baque ao ver que todo mundo falava catalão e também castelhano.

Este foi o começo do processo?

Sim. Meu independentismo vai além das questões culturais, históricas, econômicas, e além do debate sobre a viabilidade de que a Catalunha seja ou não uma comunidade autônoma dentro da Espanha. Escutava coisas… Como gente que falava mal de uma amiga porque não falava bem catalão. Ou quando falavam mal de alguém porque defendia o direito de autodeterminação. Então comecei a conversar com as pessoas e ver que, realmente, o referendo seria a saída mais digna e eficaz para que o povo da Catalunha possa decidir sobre seu futuro.

Mas pode-se ser a favor da autodeterminação e não ser independentista. Você é independentista, não?

Sim. Minha opção pela independência da Catalunha não é nacionalista, sectária, de bandeiras nem populismos. Acredito piamente que se há uma maioria social que deseja votar, isso deve ser tomado em consideração em qualquer país do mundo. Acho que deve ser dialogado com o governo espanhol e consentido, para que as pessoas possam votar e decidir seu futuro. Sinto a Catalunha como meu país, assim como sinto também o Brasil e a Espanha. Não sou anti-espanholista. Se houver um referendo votarei “sim” à independência. E quero dizer que meu atual companheiro é espanhol, mas não é independentista. Mas votou em mim.

Quando começou a atuar como ativista pela independência?

Por volta de 2008 ou 2009. Entrei para a Comissão de Cidadania Migrações do Esquerra Republicana, que não está envolvido em nenhum caso de corrupção nem tem dívida com bancos. Nessa comissão, pensávamos em políticas públicas. Militei durante três anos e saí.

Ou seja, não estava atualmente no partido?

Correto. Sempre fiz trabalho de base. Militei em plataformas e coletivos que sequer tinham registro. Não eram ONGs. Tenho alergia a ONG. Saí do ERC porque acredito que a verdadeira mudança de paradigma se faz na rua, com os movimentos sociais. Já me chamaram para fazer parte da lista das eleições municipais em Barcelona, do Parlamento catalão, e esta foi a segunda vez que me pediram para entrar na lista do Congresso espanhol. Eu sempre tinha dito que não, porque são os movimentos sociais que empurram as instituições e os políticos.

E por que aceitou desta vez?

Depois de 20 anos em movimentos sociais catalães acredito que, em algum momento, alguém da população subalternizada deve entrar nas instituições, pela questão da representatividade. Não digo com isso que serei a representante das latinas, dos brasileiros. Não. Coincidentemente sou brasileira. Mas, sei que alguém pode se sentir representado por mim. Agora, a referência é muito importante. Então, ter uma brasileira de uma família humilde do Nordeste do Brasil no Congresso espanhol pode fazer com que outras pessoas imigrantes, se tinham alguma dúvida de que podiam chegar ali, acabem com esta incerteza. Além disso, outra motivação para aceitar a candidatura foi a entrada do VOX nas instituições espanholas.

A senhora é membro da plataforma Unidade Contra o Fascismo e o Racismo. Com o VOX, o racismo e a xenofobia na Espanha vêm aumentando nos últimos anos?

O povo aqui já era racista e xenófobo antes do VOX. O que aconteceu foi que, com o VOX, as pessoas saíram do armário. O mesmo que aconteceu no Brasil. Existem muitas semelhanças. Vox é uma cópia barata do Bolsonaro e de seu séquito. Vou para o Congresso espanhol para fazer emendas a tudo o que VOX apresentar. E posso dar visibilidade às grandes lutas sociais brasileiras e fazer eco a tudo que está acontecendo no Brasil. Quero deixar claro que sou absolutamente contra a esse governo de extrema direita do Brasil. Mas a extrema direita não se vence nas urnas. Se vence nas ruas.

Quais são seus objetivos como deputada?

O Esquerda é o único partido que inclui no programa a intenção de acabar com a lei de imigração. Sem isso eu não aceitaria a candidatura. Na semana passada eu gritava nas ruas “Gasolina na lei de imigração! Vamos queimar a lei de imigração”. Outro objetivo é acabar com os Centros de Internamento de Estrangeiros (CIE), que são verdadeiros Guantánamos nas cidades europeias. Há mortes nestes CIE. Acabar com eles é meu carro-chefe. Também quero trabalhar para o fim dos muros e da militarização das fronteiras. Vou lutar, além do mais, contra a indústria da migração. Há um comércio por trás. Onde compram as roupas e os sapatos que dão para os imigrantes que cruzam o estreito? E o catering, com a comida que dão para os imigrantes? Outro ponto: mais de 5 milhões de imigrantes, das quais 865 mil estão na Catalunha, não puderam votar (ontem). Quero fazer visíveis todas estas questões migratórias na Câmara.

Em 2015, o Parlamento espanhol teve a primeira deputada negra (Rita Bosaho, nascida na Guinea Equatorial). Ela afirmou em uma entrevista que sentiu, em vários momentos, um tratamento diferente na Câmara pelo fato de ser negra. Sendo brasileira, acredita que possa passar por alguma situação discriminatória?

Com certeza. Temos uma companheira deputada, Ana Surra, que é uruguaia, e também passou por isso. Nas redes sociais, tenho uma chuva de haters . Me escrevem coisas tipo “Sudaca de mierda vuelve a tu país” . Não tenho medo de fascistas, de extrema direita. Se querem me matar, pois, que me matem. Mas me preocupei quando incluíram as minhas filhas nas ameaças, e tive que ir à polícia.

Se pudesse presenciar e participar de uma única mudança política na Espanha, qual você escolheria?

Que volte o espírito do 15-M [conhecido como o Movimento dos Indignados] e, com ele, a Catalunha possa fazer, finalmente, seu referendo de autodeterminação. A população da Catalunha, assim, poderá escolher, com um sim, um não, branco, ou nulo, o futuro deste país.

FONTE: O GLOBO

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