Jornal destrincha porque centroavantes natos são considerados ‘artigos de luxo’ no Brasil
As movimentações do futebol brasileiro neste 2022 evidenciaram uma peculiaridade. Clubes como Palmeiras, Corinthians e Vasco estão com dificuldades de encontrar um centroavante de ofício, pois o típico fazedor de gols está em falta. Da pouca renovação a novas formas de pensar em como o número 9 pode funcionar em campo, alguns fatores começam a fazer com que esta área fique perigosa no vaivém.
Mandatário do Fortaleza, Marcelo Paz reconhece que uma mudança de paradigma está afetando a rotina dos clubes.
– Virou artigo de luxo, né?! São poucos jogadores “camisas 9” tradicionais de área. Um atleta que seja bom finalizador, cabeceador… Temos poucos remanescentes disso aqui. Os que têm são veteranos que seguem fazendo gols. Os que vêm das categorias de base saem do Brasil muito jovens e não são mais os 9 de ofício, como foram Ronaldo, Luís Fabiano, como foram lá atrás Dadá Maravilha, Serginho, Careca. Hoje nós contamos nos dedos “os camisas 9” de ofício – afirmou o dirigente do Tricolor do Pici ao LANCE!.
Atualmente, Gabigol, do Flamengo e Fred, do Fluminense, surgem como alguns dos expoentes entre os centroavantes em atividade. A dupla Fla-Flu ainda consegue algo incomum, que é a concorrência interna na posição. Pedro é alternativa rubro-negra desde 2020, enquanto Germán Cano desembarcou nas Laranjeiras neste ano. Já o Grêmio continua a apostar em Diego Souza, que no início de sua carreira era meio-campista mas, aos poucos, passou a atuar mais na frente, como um camisa 9.
CATEGORIAS DE BASE INDICAM UMA MUDANÇA DE PERFIL DO “9” NO BRASIL
Gerente de captação da base do Internacional (time campeão brasileiro sub-20 de 2021), Gilberto Monteiro destacou o que é exigido para um centroavante.
– O camisa 9 pede um biotipo de força e capacidade de finalização tanto com o pé quanto com a cabeça, além de uma boa leitura de jogo e de posicionamento – afirmou.
Alguns aspectos são aos poucos lapidados para o camisa 9 “vingar”.
– Um camisa 9 precisa ter uma estatura longilínea para duelos. Além disto, tem de ter capacidade de força e movimentação para sustentar o jogo, terminar as jogadas e ter boa finalização. Claro que em alguns momentos pode acontecer de um atleta não ir bem em um fundamento. Por exemplo, o jogador tem boa finalização, mas não é “agressivo” para jogadas ou não é bom no cabeceio. À medida que vemos um atleta com potencial, fazemos um trabalho específico para que ele aprimore em todos os fundamentos – disse Monteiro.
O gerente de captação do Colorado apontou que a responsabilidade começou a ser maior para quem atua nesta área. Não basta ser uma referência.
– Hoje, o modelo de jogo pede um atacante que tenha mais movimentação, em vez de um 9 que seja referência de área. A mudança de perfil faz com que o atacante saia mais – e emendou:
– Tem que ser um jogador que se apresente para fazer tabela e ao mesmo tempo consiga fazer as conclusões e tenha uma presença de área – completou.
REFLEXO DO FUTEBOL MUNDIAL?
Treinador do ouro olímpico da Seleção Brasileira na Rio-2016, Rogério Micale atribui a escassez de centroavantes natos a um novo momento do futebol do país. O atual técnicos do Al-Dhafra (EAU) opinou.
– São mudanças que ocorrem naturalmente no futebol. Alguns chamam de “modismos”, mas na verdade são ciclos que iniciam. O ciclo do camisa 9 fixo ficou menor principalmente com o fracasso do Brasil na Copa do Mundo na qual sofremos o 7 a 1 (para a Alemanha, na semifinal do Mundial de 2014, no Mineirão). Dali em diante, começamos a rotular o número 9 e houve a busca por alternativas do mercado – constatou.
Micale diz que emergiu ao mesmo tempo um novo estilo no exterior.
– Aí apareceu o “falso 9”, que é um jogador com mais mobilidade, sai um pouco mais da área. Além de ter de boa finalização, é um bom articulador de jogadas. Cada vez mais isso se tornou uma tendência dos clubes. A base vem acompanhando tudo o que acontece no futebol, dando início a uma escassez na posição de centroavante – disse.
O treinador cita um nome importante no futebol mundial que refletiu para esta quebra de paradigma.
– Tem o caso do Pep Guardiola, que usa o (Gabriel) Jesus como “falso 9”, flutuando entre linhas. Isso se torna uma tendência de mercado mundial e vira uma realidade no Brasil. Ainda existem algumas exceções, mas acredito que seja uma coisa que não tenha mais volta – declarou.
Segundo Rogério Micale, a pressão em torno do centroavante se torna intensa.
– É uma posição na qual há uma cobrança muito grande. Há o rótulo de “fazedor de gols”. Para um jovem é muito complexo ter capacidade de absorver isso. Todo mundo quando vê um “9” despontar na base já tem uma expectativa muito grande. Muitas vezes, isso traz um peso muito grande para o jogador – apontou.
Ex-coordenador da base da Seleção Brasileira, Alexandre Gallo também atribui a redução de opções entre centroavantes à parte tática.
– Há uma mudança de sistema. As equipes preferem hoje um atacante que ajude a aumentar a posse de bola, dando opção de passe. Temos jogadores na base com condições físicas para serem centroavantes, mas a rotatividade no campo exige que um camisa 9 saia mais e faça o “facão” na diagonal – declarou.
Aos seus olhos, a realidade em especial das categorias de base dos clubes desemboca nestas mudanças.
– É preciso todo um contexto de trabalho, um modelo de jogo específico para que um finalizador de área tenha também seu espaço. Não ficar restrito à posse de bola, ao “falso 9” – disse.
CENTROAVANTES VETERANOS ‘RESISTEM’ E SE AJUSTAM A NOVOS PADRÕES
Alguns “fazedores de gols” continuam a se empenhar para irem bem em gramados brasileiros. Elton teve seu contrato renovado com o Cuiabá. O jogador de 36 anos tem seu desempenho elogiado pelo vice-presidente do Dourado, Cristiano Dresch.
– A manutenção do Elton não foi porque o mercado está escasso (quanto a centroavantes). Foi pela performance dele. Ele foi bem, fez nove gols (no Brasileiro de 2021), gols importantes. É um cara experiente, conhece bem a competição, está identificado com o clube – afirmou sobre o atacante que tem passagens por Vasco, Flamengo e Corinthians.
Já na Série B, onde há mais espaço para jogadores de área, outro veterano “fazedor de gols” rende entusiasmo: Kieza, do Náutico. Porém, o técnico do Timbu, Hélio dos Anjos, exalta um aspecto do atleta de 35 anos.
– Kieza é um centroavante moderno, ataca muito bem as linhas. Essa geralmente é uma dificuldade que um centroavante tem. Mas Kieza tem um potencial de iniciar a pressão, até por sua inteligência muito grande. Ele faz a equipe jogar, gosto de jogadores com suas características – declarou.
Aos olhos do treinador, a diminuição de opções de centroavantes no mercado passa pela velocidade atual do jogo.
– Creio que ficou mais escasso esse tipo de jogador até mesmo em função da modernidade do futebol. Há essa dinâmica, intensidade… Quando você não tem um ponto de referência, os zagueiros têm mais dificuldades. Com isto, a maioria das equipes não usa muito esse jogador – afirmou.
Hélio dos Anjos, contudo, frisa que há clubes que conseguem equilibrar as ações ofensivas.
– Não quer dizer que o centroavante tenha perdido de vez seu espaço. O próprio Flamengo sabe agir bem desta forma. A articulação de jogadas é superior e a equipe tem um centroavante em campo ao mesmo tempo – constatou.
O vice do Cuiabá expõe também que a parte financeira pesa para a falta de referências de área no futebol nacional.
– O mercado está muito escasso mesmo de centroavantes. A gente está tendo um problema de que cada vez mais o Brasil está perdendo jogadores para todos os mercados. Ásia, Estados Unidos, México… Competir com a Europa, então, nem se fala. A tendência de ter dificuldade em determinadas posições vai só aumentar – constatou o dirigente Cristiano Dresch.
CARACTERÍSTICA DO ‘9’ TAMBÉM VARIA NA SELEÇÃO, DIZ TITE
A função do camisa 9 também não passou batida pelo técnico Tite. Em entrevista coletiva após a convocação da Seleção Brasileira na quinta-feira passada (13), o comandante canarinho foi veemente ao ser perguntado se prefere um homem de área ou um jogador que seja mais participativo.
– Não dá para fechar conceito. Procuramos ter jogadores com diferentes características. Nisso está a expectativa pelo Pedro (atualmente na reserva do Flamengo). É um jogador mais de área. Para ter a concorrência. A dupla de ataque pode se complementar. O que não dá para abrir mão é ter jogadores para diferentes necessidades do jogo – e citou:
– Exemplo: Brasil 1 x 0 Venezuela. Chega 20 do segundo tempo, colocamos Pedro e Richarlison enfiados. Com dois pivôs, dois externos e dois meias. A Venezuela marcava só atrás. Ter opções sem definir características – complementou.
O técnico do Náutico, Hélio dos Anjos, aponta o que o camisa 9 de origem tem de achar outras maneiras para continuar a lutar pelo seu espaço.
– Taticamente, o momento do futebol é de muita movimentação e o centroavante de ofício tem certa dificuldade na marcação por pressão. Na maioria dos times modernos, você precisa de atacantes para iniciarem a linha alta de marcação. É um fator que tira a chance de centroavantes serem formados até mesmo nas divisões de base – disse.
Mesmo assim, o comandante do Timbu vê espaço para estilos de jogos com ou sem um camisa 9.
– Já joguei muito sem esse centroavante e não encontrei dificuldades. Tudo tem, tudo cabe. Os jogadores, principalmente de nível alto, eliminam muitas coisas que antes no futebol ninguém conseguia fazer – e destacou:
– Cito o Atlético-MG. A gente viu que o time do Cuca era mais conjunto sem a formação do Hulk e Diego (Costa, que fez parte do elenco campeão brasileiro de 2021 do Galo). Muitas vezes um jogador enfiado tira esse conjunto. Mas isto não significa que um jogador do nível do Lukaku (centroavante do Chelsea) não sirva para jogar em nenhum time, pois é um “monstro” na função natural de centroavante – finalizou.
A tentativa de achar um centroavante nato continua em pauta entre clubes. Ser certeiro para encontrar um camisa 9 no mercado é só o primeiro passo.
FONTE: LANCE
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