Pesquisas ligam avanço da agropecuária em biomas como Amazônia e Cerrado a estiagem e alta nas temperaturas, o que, segundo cientistas, reduz a produtividade e resulta em bilhões de dólares de prejuízo por ano ao setor.
Enquanto o desmatamento bate sucessivos recordes no Brasil, pesquisadores tentam mostrar que o avanço da agropecuária sobre os biomas pode ser um tiro no pé do próprio agronegócio. Segundo estudos recentemente publicados, o setor já está deixando de ganhar bilhões de dólares por ano por conta da questão ambiental — e, se esforços não forem feitos para conter os danos, a expectativa é de piora no cenário.
De acordo com o sistema Deter do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe), o desmatamento da Amazônia teve, em junho de 2021, o pior índice para esse mês desde o início da série histórica: 1.061,9 quilômetros quadrados.
Publicado pelo periódico World Development, um estudo liderado pela engenheira ambiental Rafaela Flach, pesquisadora da Universidade Tufts, nos Estados Unidos, calculou em 3,55 bilhões de dólares por ano os prejuízos atuais da indústria da soja por conta do excesso de calor — cada dia com calor acima de 30 graus Celsius reduziria a produtividade do grão em até 5%.
“Nosso trabalho partiu da relação entre a perda de ecossistemas e a influência na temperatura, com base em dados de satélites e dados meteorológicos. É uma relação bem forte, e analisamos a situação na Amazônia e no Cerrado”, explica Flach. “Estimamos qual é o efeito desse aumento extremo de temperatura na cultura da soja, considerando a perda de produtividade em decorrência do calor.”
Em maio deste ano, a revista Nature publicou um estudo que também apontou para o bolso dos ruralistas. Demonstrando que os atuais níveis de desmatamento são causadores dos cada vez mais recorrentes períodos de estiagem, os pesquisadores ressaltam que conter esses danos aos biomas nativos seria capaz de reduzir os gastos com a agropecuária em 1 bilhão de dólares por ano, considerando apenas a região sul da Amazônia brasileira.
“A conta já chegou para o agronegócio”, comenta um dos autores da pesquisa, o engenheiro florestal Argemiro Teixeira Leite Filho, professor na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Com menos árvores na floresta, há menos umidade no ar e menos chuvas. Logo, o avanço do desmatamento na Amazônia impacta a produtividade do agronegócio brasileiro.”
Agronegócio aposta na tecnologia
Na outra ponta do balcão, os ruralistas argumentam que o agronegócio não pode ser visto como bode expiatório da questão ambiental. “Estabelecer a produção agropecuária como causa do desmatamento, no Brasil ou em qualquer lugar, é simplificar algo complexo, incorrendo em erro e contradição”, afirma o advogado Francisco de Godoy Bueno, conselheiro da Sociedade Rural Brasileira.
“O que é verdadeiro é que o desmatamento de vegetação nativa na Amazônia, no Cerrado e em outros biomas, exceto Mata Atlântica, é permitido no Brasil, de modo que não é ilegal a alteração do uso do solo coberto com vegetação nativa par a formação de novas pastagens e lavouras”, pontua Bueno. “Assim, ainda que seja uma verdade que a produção aumenta sem desmatamento, também é verdade que o desmatamento poderá continuar sempre ocorrendo, desde que feito de forma legal e controlada, mediante o devido licenciamento ambiental.”
Ambientalistas divergem sobre esse ponto. Critérios para autorização de desflorestamento são complexos, e os requisitos a serem atendidos variam, inclusive, de estado para estado, diz o biólogo Mairon Bastos Lima, pesquisador no think tank sueco Instituto Ambiental de Estocolmo.
“Mas não dá para nos prendermos puramente à questão da legalidade quando temos um Congresso e um Executivo amplamente dominados por interesses ruralistas e que são os mesmos que determinam o que é proibido ou não, com um Ministério do Meio Ambiente aparelhado, como vimos, e órgãos de controle sucateados”, afirma ele.
Conforme levantamento publicado pelo periódico Biological Conservation, o governo de Jair Bolsonaro tornou mais lenientes 57 leis ambientais e, entre março e agosto de 2020, reduziu em 70% as multas por operações ilegais.
Bueno diz que é preciso “compatibilizar a pauta ambiental com a pauta fundiária”. “Enquanto for mais rentável possuir terras agrícolas do que terras cobertas com florestas, o desmatamento será sempre uma alternativa possível e razoável dentro dos limites da lei para a ocupação de novas fronteiras agrícolas residuais, mesmo que a ocupação dessas terras não seja necessária para o crescimento da produção como um todo”, argumenta ele.
Para aumentar a produtividade, o agronegócio aposta na tecnologia. O conselheiro da Sociedade Rural Brasileira argumenta que “é importante reconhecer que a produção agropecuária do Brasil aumenta em percentuais muito superiores ao de área plantada”.
“Sim, o Brasil tem tecnologia para suportar aumentos de produtividade em detrimento da expansão da área”, defende o cientista político Christian Lohbauer, ex-executivo da Bayer, candidato à vice-presidência pelo partido Novo em 2018 e presidente da CropLife Brasil, associação que reúne empresas do setor de insumos agrícolas e biotecnologia, com uma pauta de defesa de transgênicos e agrotóxicos.
“Sem dúvida, o desmatamento ilegal deve ser combatido. Não traz nenhum benefício para a sociedade, em especial para os agricultores que são diretamente impactados por mudanças no clima”, afirma Lohbauer. “No entanto, o desmatamento não pode ser creditado à expansão da cultura da soja.”
Ele cita um estudo elaboradora pela Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Óleo Vegetal, que analisou imagens de satélites do Cerrado entre 2000 e 2019 e concluiu que 9% do bioma está ocupado pela cultura. “Com base nos dados do Cadastro Ambiental Rural, é possível assegurar que 95% da soja produzida no Cerrado vem de áreas desmatadas legalmente”, afirma ele, dizendo que na Amazônia a situação é semelhante.
Essa afirmação de Lohbauer, contudo, é contraditória. De acordo com Relatório Anual do Desmatamento no Brasil, produzido pelo Mapbiomas Alerta, 99% da devastação ocorrida em 2020 foi ilegal. Com base no Cadastro Ambiental Rural (CAR), contudo, é possível saber que todo esse dano foi causado por apenas 1% das propriedades rurais. Há uma indicação, portanto, que em termos de quantidade de propriedades, sejam poucos os desmatadores — mas em termos de área total, o desmatamento ilegal é quase a totalidade.
Para Lima, o que ocorre é que muitos ruralistas argumentam que basta respeitar o percentual determinado pela legislação local para preservação da mata de suas propriedades e se está cumprindo a lei. “Não é assim”, diz ele. “É preciso, dentre outros requisitos, ter uma autorização de supressão vegetal previamente concedida. Não é só ter o percentual de reserva legal na propriedade.”
Segundo análise realizada pela plataforma de monitoramento Trase, em parceria com os institutos Imaflora e Centro de Vida, 95% do desmatamento em fazendas de soja entre 2012 e 2017 ocorreu de forma ilegal. E 27% do total do desmatamento no Mato Grosso no período foi feito em fazendas produtoras do grão.
“A natureza não diferencia entre desmatamento legal ou ilegal”
Contudo, o que pesquisadores e ambientalistas lembram é que, uma vez reduzida a floresta, o impacto será vivido — não importa se o desmatamento foi feito de forma legal ou não.
“É preciso frisar que os problemas ambientais não são em nada amenizados pelo desmatamento ser ou não ser ilegal. A natureza não faz diferenciação entre desmatamento legal ou ilegal — é preciso ter esta noção”, comenta Lima.
“É como poluir um rio. Tenha ou não alguém a autorização para realizar ali um despejo tóxico, aquilo vai ser tóxico e provavelmente criar problemas independentemente do que diz a lei”, complementa. “Aliás, se a lei não coíbe comportamentos que virão a causar problemas desta magnitude para toda a sociedade e o planeta, então vemos que a lei não está adequada. Prova que ela não é rígida o suficiente para evitar os problemas que agora afetam todo o país.”
O biólogo argumenta que não é porque o desmatamento, em determinada situação, está dentro da lei, que o agricultor é “obrigado a fazê-lo”. “Nem tudo o que eu não estou proibido de fazer é bom para mim ou para a sociedade, e o agronegócio agora está vendo que desmatar é prejudicial a ele próprio, seja isso legal ou não.”
“Esses estudos [que mostram o prejuízo econômico decorrente do desmatamento] têm a contribuição positiva de sensibilizar e informar o setor do agronegócio acerca desse efeito bumerangue”, avalia o biólogo Mairon Bastos Lima, pesquisador no think tank sueco Instituto Ambiental de Estocolmo. “Nem sempre se faz a associação entre o desmatamento feito hoje e a falta de chuva que vem em seguida, até porque há um pequeno lapso temporal aí.”
Ele percebe dois problemas nesse ciclo vicioso. O primeiro é que, em termos do indivíduo, “aquele que desmata”, esse trabalho ainda pode compensar financeiramente. O segundo é que o agronegócio, como setor, “pode também simplesmente fatorar esses custos na sua contabilidade”. “Os lucros do agronegócio são grandes. Não acho que isso sozinho seja o bastante para levar o agricultura a não abrir novas áreas”, aponta.
Isto posto, Lima acredita que a solução seja mais do que conscientizar o produtor rural, seja conscientizar o cidadão em geral. “Todo mundo já percebeu que há falta de chuvas, que há desmatamento no Brasil. A questão é fazer a população perceber que esses dois fenômenos estão relacionados”, afirma. “As pessoas vão fazer pressão por políticas contra o desmatamento quando compreenderem as consequências nefastas desse desmatamento para todo mundo, chegando até à conta de luz. Esse entendimento é fundamental.”
FONTE: DEUTCHE WELLE
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