Para controlar o estrago da doença é preciso reconhecer que o cenário mudou e as medidas de estímulo são necessárias
Como uma epidemia global de síndrome respiratória aguda severa (sars em inglês) se assemelha a uma crise econômica? Qual a relevância do câncer para compreendera economia? Por que um especialista em crise precisa saber um pouco de medicina?
Eu não pretendia ser economista. Circunstâncias da vida me levaram a estudar e a seguir carreira na área, embora minha ideia fosse fazer medicina. O interesse na ciência médica, entretanto, permaneceu vivo e me levou a uma longa trajetória de estudos e leituras científicas nas suas duas áreas que mais me fascinavam: virologia e oncologia. A virologia e a oncologia me aproximaram das crises econômicas.
Escrevi minha tese de doutorado, desenvolvida na London School of Economics, sobre crises financeiras. Considerem o sistema imunológico. Ele consiste em uma rede formada por todo tipo de célula, sendo as células distribuídas pelo corpo inteiro – estão no sangue, na medula óssea, nos linfonodos.
Essa coleção de células trabalha em conjunto, como uma sinfonia sem maestro, de forma organizada, porém, sem controle central. É como o sistema econômico, em que as células são as empresas, os consumidores, os bancos, o governo, que se auto-organizam e interagem de forma complexa, em rede.
Quando um agente nocivo – um vírus ou uma célula alterada – entra ou aparece em algum lugar do corpo, o sistema imunológico é acionado. Mas, muitas vezes, ele não tem a capacidade imediata de eliminar o agente, que pode ser externo, o vírus, ou interno, a célula maligna, e acaba deflagrando uma crise – a doença.
No caso da COVID-19, o vírus é capaz de fazer o sistema imunológico atacar o próprio corpo, os pulmões, levando à falência múltipla de órgãos por falta de oxigênio nos casos mais severos. Assim também é com as crises financeiras. Nem sempre o sistema econômico é capaz de superar choques ou desequilíbrios internos – vírus e células malignas –, e sua incapacidade leva aos surtos de extrema volatilidade nos mercados e à paralisia das empresas, dos consumidores, das atividades econômicas em geral, dos países.
Olhem ao redor. Reparem como está tudo parando, como estamos diante de uma falência múltipla de órgãos, com consequências gravíssimas para o mundo. O que fazer? No caso de tipos específicos de câncer, a ciência tem avançado nos tratamentos imunoterápicos, cujo objetivo é fazer com que o sistema imunológico reconheça as células malignas e neutralize sua replicação. Nos medicamentos antivirais, o objetivo é o mesmo, apenas alcançado por mecanismos diferentes.
Nem sempre esses tratamentos haverão de salvar o paciente, mas eles funcionam numa interação complexa com a rede imunológica. Com as crises econômicas, dá-se o mesmo. Buscam-se tratamentos capazes de sustentar o funcionamento da economia enquanto ela se reorganiza para sair da paralisia. As injeções de liquidez dos bancos centrais e os pacotes de estímulo fiscal são os impulsos de que a economia precisa para voltar a respirar sem auxílio. Como os imunoterápicos e os antivirais, às vezes esses impulsos são eficazes. Às vezes não o são. Porém, vale para os governos o princípio que vale para os médicos trabalhando na linha de frente da epidemia: tentar o que for possível para controlar a crise.
O Brasil enfrentará muito em breve uma crise que mistura medicina e economia como nenhuma outra o fez. Ela não tem precedentes, nem manual, tampouco protocolos. Para controlar o estrago da doença – falo da que levará ao sofrimento físico e financeiro – é preciso reconhecer que o cenário mudou e as medidas de estímulo são necessárias.
Não fazer nada é garantir a inevitável recessão, que, junto com a COVID-19, atacará a população mais vulnerável. Chamar de fantasia aquilo que já é concreto é mais do que irresponsável: é desumano. A COVID-19 pode ser devastadora para os pulmões mesmo daqueles que dela se recuperam. A recessão será devastadora para todos os subempregados, a população mais pobre, os idosos desamparados e qualquer pessoa que precise de atenção hospitalar. Serão muitas, inclusive os jovens.
COVID-19 não é uma gripe. COVID-19 é uma doença que pode destruir os pulmões das pessoas, da economia global, do Brasil. Ouçam os especialistas e cobrem os economistas.
FONTE: ÉPOCA
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