Em Raqqa, população experimenta brutalidade diária da ‘capital’ do grupo jihadista
RAQQA— Algumas semanas atrás, meu amigo Saeed tentou tirar a família de Raqqa, a cidade no leste da Síria que, desde 2014, é a capital extraoficial do autodeclarado Estado Islâmico (EI).
— Está ficando muito difícil conseguir emprego — disse. Ele estava deprimido por não ter conseguido passar na fronteira com a Turquia ao lado da sua mulher e filhos.
Falo com Saeed quase sempre por telefone. Ele estava entre os milhares que fugiram do confronto em Aleppo, no noroeste da Síria, em 2012. Nós nos conhecemos quando eu procurava uma casa para alugar em Raqqa.
Embora estivesse cercada pelos rebeldes do Exército Livre da Síria e por grupos islamitas como a Frente Nusra, ligada à Al-Qaeda, na época a cidade era segura em comparação a Aleppo, Homs e Deir Ezzor. Por isso, não demorou para ficar lotada de refugiados. Mas, em 2013, com a aproximação dos rebeldes e os bombardeios promovidos pela Força Aérea do presidente Assad, começaram a ir embora aqueles que tinham condições para isso.
Raqqa é a minha cidade natal; deixá-la estava fora de questão. Mesmo sob os bombardeios, os moradores continuavam tocando a vida e os negócios. Eu tinha dois empregos.
Em janeiro de 2014, a Frente Nusra e outros grupos começaram uma campanha para forçar o Estado Islâmico a sair da Síria; porém, depois de duas semanas de batalha, o EI tomou Raqqa, cidade estratégica para o grupo jihadista que nasceu no Iraque.
A essa altura, a maioria dos postos do governo estava desativada. Quem tinha a sorte de trabalhar nos departamentos que ainda funcionavam — como os setores de energia e de saúde — arriscava a vida. Para receber o salário, era necessário viajar quase 160 quilômetros até a parte ocupada pelo governo de Deir Ezzor. Enquanto isso, outros perderam sua fonte de sustento.
Algumas pessoas ficaram relativamente ricas, incluindo os empregados das antigas refinarias de petróleo da cidade. No entanto, muita gente se voltou à agricultura de subsistência para garantir a alimentação da família – mesmo aqueles que tinham ensino superior, como Abdulrahman, um engenheiro amigo nosso. Abdulrahman não convidou o Estado Islâmico a invadir sua cidade. Ele trabalhava no Departamento das Finanças, tinha apartamento próprio, um carro bom; hoje, mal consegue se manter vendendo verduras, da mesma forma que o seu pai fazia.
Poucas pessoas são como Abdulrahman, que prefere ficar na cidade, aconteça o que acontecer. A maioria está presa, como Saeed, na “capital” do Estado Islâmico – que se tornou também, é claro, o principal alvo dos ataques aéreos da coalizão liderada pelos EUA. Muitos moradores de Raqqa enfrentam ainda outro problema: evitar que os filhos sejam absorvidos pela luta. Eu vejo, em primeira mão, que a ideologia do EI não tem apelo nenhum para os adolescentes locais; o que eles querem são as armas e o dinheiro.
Sem contar o bônus, um guerrilheiro começa ganhando cerca de US$200 ao mês. Isso é mais do que uma família precisa para viver (um civil como Saeed se mata para ganhar US$150). E o guerilheiro ainda leva um adicional pelas mulheres, filhos, escravas e provisões, o que eleva sua renda mensal para mais de US$500. Se pedir uma casa, o EI lhe entrega as chaves em menos de dois meses.
Esses jovens querem ser ouvidos quando falam. E temidos.
Esses fatores – “respeito”, dinheiro e armas – estão transformando rapazes comuns em assassinos.
No ano passado, começaram os boatos de que o grupo iria selecionar recrutas locais. Não demorou para que os rumores se concretizarem. Perto da linha de frente, onde o EI está lutando contra as Unidades de Proteção do Povo Curdo (YPG, na sigla local), os jihadistas já selecionaram um homem de cada família para, em suas palavras, “defenderem os vilarejos”.
VIOLÊNCIA E PERSEGUIÇÃO
Em Raqqa, as notícias de que o YPG e o Exército Livre da Síria (ELS) estão se preparando para um ataque já causam temor. Seria a terceira batalha pelo controle da cidade em dois anos – e quanto mais outros territórios e regiões expulsam os guerrilheiros, mais solidamente eles se estabelecem aqui. Além de arregimentar os homens, os islamitas estão confiscando casas e cobrando novos impostos.
Enquanto isso, os bombardeios continuam praticamente toda noite. Quando a coalizão atingiu a sede do Estado Islâmico pela primeira vez, em 2014, todo mundo ficou empolgado. Agora é diferente. Volta e meia sabemos de um drone que matou um comandante do grupo, mas nada disso indica que a facção se enfraqueça. Ela continua em Raqqa e as bombas só assustam e dificultam ainda mais a vida dos civis. De fato, as mesmas pessoas que são vítimas do Estado Islâmico também estão sendo bombardeadas pelos inimigos.
Ninguém acredita que só os ataques aéreos resolverão alguma coisa. Pelo menos não os ataques dos russos. Da mesma forma que as forças de Assad, eles não distinguem os cidadãos comuns dos jihadistas. Enquanto a organização não for eliminada, a comunidade vai permanecer como refém, de uma forma ou de outra, pois tem o poder local. Raqqa é vista pelos extremistas como porto seguro e base de recrutamento, mas quem vive sob seu jugo são os que mais sofrem com sua brutalidade.
A diversidade da sociedade síria foi destruída; hoje, as minorias são perseguidas. Praticamente todo dia há pessoas sendo açoitadas ou executadas nas ruas, acusadas de violarem a sharia (conjunto de leis da fé islâmica) ou de serem espiãs. No início deste mês, foi confirmada a morte de uma jornalista chamada Ruqia Hassan, desaparecida há vários meses, nas mãos dos militantes do EI que a acusaram de ser espiã do ELS.
O Estado Islâmico dá às pessoas uma única escolha: fugir da pobreza lutando ao seu lado. O mundo precisa oferecer melhores opções ao povo que vive sob o controle do grupo e, ainda, impedir que o governo de Assad ataque feiras e pontes. É preciso impedir que seus aliados russos também realizem bombardeios — como aconteceu recentemente, quando um ataque atingiu uma represa e interrompeuu o fornecimento de água para uma cidade inteira.
Acima de tudo é essencial que não confundam os moradores das cidades ocupadas com terroristas só porque são pobres demais e não puderam fugir com a chegada do Estado Islâmico. É esse povo sob ocupação a maior esperança para destruir os jihadistas. Sem seu apoio, dificilmente o EI será derrotado.
Fonte: oglobo
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