O cartunista de 65 anos recebeu um diagnóstico de afasia, doença neurodegenerativa que prejudica a comunicação e, conforme evolui, incapacita o paciente de se expressar de forma verbal ou escrita.
Nome que ajudou a escrever a história dos quadrinhos no Brasil, Angeli está guardando o lápis na gaveta e encerrando uma carreira que revolucionou a arte que se podia fazer em jornais.
O cartunista de 65 anos recebeu um diagnóstico de afasia, doença neurodegenerativa que prejudica a comunicação e, conforme evolui, incapacita o paciente de se expressar de forma verbal ou escrita.
A condição médica ganhou holofotes no mês passado, quando o ator americano Bruce Willis -dois anos mais velho que Angeli e com uma equiparável fama de durão- anunciou sua aposentadoria do cinema pelas mesmas razões.
Não é exagero dizer que o anúncio fecha uma era dos quadrinhos, já que o traço inconfundível de Angeli, sua estética punk e comportamento transgressor, marcaram a identidade de uma geração.
“O Angeli tem o peso de um Pasquim inteiro em matéria de influência e significado de uma época”, afirma Laerte, cartunista histórica deste jornal, assim como o amigo. “Ele foi vital para a existência do que entendemos como humor em São Paulo.”
Se a notícia tem um inevitável gosto amargo, ela vem acompanhada de uma homenagem inédita: em celebração aos seus 50 anos de carreira, pela primeira vez uma seleção ampla do trabalho de Angeli está sendo preparada em grande estilo pela Companhia das Letras.
O audacioso projeto, organizado por André Conti e Carolina Guaycuru, mulher de Angeli, pinça trabalhos de todo tipo ao longo das últimas cinco décadas, passando por tiras de jornais e revistas, charges, ilustrações e desenhos variados. O plano é publicar dois volumes, reunindo cerca de mil trabalhos, ainda este ano.
“A ideia era um projeto que desse a noção completa do quanto ele fez”, afirma Conti. “Tínhamos mais de 50 mil desenhos, do papelão que ele rabiscava enquanto falava ao telefone até processos mais elaborados de capas.”
A mesma editora já tinha feito compilações fartas de seus personagens mais famosos em edições como “Todo Bob Cuspe”, “Toda Rê Bordosa” e “Todo Wood&Stock”, este do ano retrasado. Como esse material está mais acessível, diz Conti, o novo volume fará uma triagem mais econômica deles.
A aposentadoria também encerra a ligação umbilical de Angeli com a Folha de S.Paulo, sua casa por mais de quatro décadas. A colaboração começou em 1973, quando o ilustrador nem podia beber legalmente, e se tornou fixa dois anos depois. De 1983 a 2016, ele publicou tirinhas diariamente na Ilustrada.
“Angeli é parte importante da história dos quadrinhos brasileiros e da própria Folha”, diz o diretor de Redação do jornal, Sérgio Dávila. “Influenciou mais de uma geração de autores com seu traço único e seu comentário ácido sobre comportamento e política. Mais que desenhos, Rê Bordosa, Bob Cuspe e tantos outros são personagens literários.”
“Não sei falar do meu pai sem a Folha”, diz sua filha, a publicitária Sofia Angeli. “Ele já tinha começado a carreira antes do jornal, mas foi ali que tudo aconteceu, onde brotou algo grande, com brilho.”
Reza a lenda que a primeira publicação de Angeli foi aos 14 anos, na antiga revista Senhor, mas os organizadores da coletânea não conseguiram localizar com exatidão esse trabalho pioneiro.
E sua despedida da imprensa está na seção Quadrão, que ele revezava aos domingos na Ilustrada Ilustríssima com Jan Limpens, Luiz Gê, Ricardo Coimbra e Laerte –com quem formava a trupe Los Tres Amigos ao lado de Glauco, morto há 12 anos.
Caminhar por São Paulo ao lado de Angeli, lembra o gaúcho Adão, era como ostentar um troféu. “Quando o via andando atrás de mim, me sentia meio bobo. Entrava com ele no bar sorridente, com todos olhando. Ele era como um Mick Jagger.”
“O Angeli só não é famoso mundialmente como Robert Crumb porque escreve em português”, afirma ele, acrescentando, seguro, que a cena brasileira de quadrinhos era mais forte que a da maioria dos países nos anos 1990.
Adão lembra uma frase dita por Luis Fernando Verissimo ao rebater o mito de que São Paulo não produzia literatura. “A literatura de São Paulo são os quadrinhos.”
Essa cena literária agora se desfalca, mas é preciso ponderar os lamentos. “As pessoas têm que saber que Angeli é uma figura pública, um personagem. Angeli se aposenta, mas o Arnaldo está aqui”, aponta a filha Sofia, citando o primeiro nome do cartunista. “É uma pessoa incrível que se despede de uma carreira, mas não se despede da vida.”
FONTE: FOLHAPRESS
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