Levantamento relaciona microdados de 1,3 milhão de estudantes que fizeram a prova no fim do ano passado e do Censo Escolar de 2017
Saber se a escola de um aluno é privada ou pública, a renda de sua família e até a profissão dos pais pode explicar, na média, o resultado obtido no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Um estudo feito pelo cientista de dados e mestre em Economia do Setor Público pela Universidade de Brasília (UnB) Leonardo Sales, a pedido do Estado, mostra que fatores socioeconômicos como esses estão correlacionados a até 85% da nota no exame.
O levantamento foi feito com base nos microdados do Enem e do Censo Escolar de 2017 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão vinculado ao Ministério da Educação (MEC). O modelo traça correlações com base nas notas e informações de 1,3 milhão de estudantes que fizeram a prova no fim do ano passado.
Segundo o estudo, dez variáveis são as que mais se correlacionam ao desempenho na prova, incluindo se a escola do candidato é privada, a renda da família, a oferta de equipamentos multimídia no colégio, o número de funcionários por aluno, entre outros. Um desempenho mais baixo está associado a variáveis como estudar em escola pública, morar em um domicílio que não tem computador, inexistência de carro e acesso a internet e/ou telefone fixo.
Isso não significa que cada um desses fatores seja o motivo específico pelo qual o aluno foi bem, ou seja, que sejam a causa do desempenho. No caso de variáveis relacionadas aos bens que a família do candidato tem em casa, por exemplo, essas informações estão diretamente ligados à renda. Também não significa que o preparo do aluno não faça diferença, mas que o perfil dos que têm notas semelhantes se repete. “Os dados mostram que existem dificuldades relacionadas às condições sociais que tornam o caminho mais difícil rumo à faculdade. Isso, na verdade, valoriza os que, mesmo com péssimas condições de vida, conseguem um bom resultado”, diz Sales.
Os dados do estudo corroboram análises já existentes sobre o desempenho de estudantes em testes – quanto maior a renda da família e as condições da escola e da comunidade escolar, mais chances eles terão de conseguir melhores resultados. Dados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) já mostram essa relação – quanto maior o nível socioeconômico do colégio, maiores são as médias no índice oficial, que é o principal indicador do governo federal de qualidade da educação básica no País.
Isso não significa que o desempenho individual não tenha importância, mas que só isso explica pouco sobre o resultado nas avaliações, segundo especialistas. “O grande fator que pesa no desempenho do aluno está associado à família, pela renda e pelo capital cultural e social. Importa se a criança foi criada em um ambiente letrado, se tem livros, se ela é desafiada. E, é claro, importa a renda”, diz o professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Chico Soares, especialista em avaliações.
“As características individuais também importam”, afirma ele. “Mas é mais difícil que elas, sozinhas, deem conta das características institucionais. Não há como a escola compensar a família. O que não teve na família, dificilmente terá na escola. E se não tiver apoio em nenhum dos dois, fica mais difícil ainda.”
Convívio
O especialista ressalta ainda que, na escola, o que acaba pesando mais é o convívio com outros alunos semelhantes. “O grande diferencial são os pares, ou seja, pessoas que também vieram de família com maior capital cultural e econômico. Isso cria um ambiente muito propício para o aprendizado.”
Quais são as variáveis?
Afeta positivamente
1. Se o aluno estudou em uma escola privada
2. A renda per capita familiar
3. O nível de utilização de equipamentos multimídia no colégio
4. O número de funcionários (relativo à quantidade de alunos) da escola
5. Se a instituição possui parque infantil
Afeta de forma negativa
1. Se o aluno estudou em uma escola pública estadual ou municipal
2. Inexistência de computador no domicílio
3. Inexistência de carro no domicílio
4. Inexistência de acesso à internet no domicílio
‘Tive uma família com condições e estrutura para me financiar’
Aluno do ensino público durante toda a vida, Erick Henrique, de 25 anos, é um dos produtos da inclusão socioeconômica fomentada pela prova. Por ter pai militar, ingressou na Fundação Osório, da rede federal, aos 7 anos, depois de ser alfabetizado em uma instituição filantrópica. Nascido e criado no Morro da Providência e sem condições financeiras ideais, o hoje empreendedor superou as dificuldades para ser aprovado na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), onde cursa Administração.
“Na rede estadual, percebi que a base que tive na Fundação Osório foi ótima. Questionei um pouco meu ensino médio. Queria fazer um curso, mas é muito caro e não tinha condições, mesmo trabalhando (comecei aos 16). Estudei em casa, sem muita motivação ou pré-vestibular, e no fim passei no curso que queria em uma faculdade pública”, disse.
As diferenças não residiam apenas no conteúdo. Filho mais velho dos três de uma dona de casa que só ingressou no ensino superior depois dele, relembra momentos em que a estrutura de sua escola, o Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro, da rede estadual, se mostrava defasada em relação ao ensino privado.
“Mesmo sendo uma escola de referência entre as públicas, não havia tecnologia de ponta e às vezes faltava professor. Ainda sofri com greves porque o governo não valoriza a educação. Faltava modernização porque o colégio não recebia investimentos compatíveis com a estrutura que precisava manter”, frisou.
Apoio
Juliane Godas, de 21 anos, tem uma história diametralmente oposta. A estudante de Medicina da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), que teve toda sua formação em escolas particulares, sabe das benesses que uma boa condição financeira traz. “Tenho total noção que faz muita diferença. É muito privilégio. Eu já sabia, mas vi na prática aqui na UniRio. Mesmo sem ter muito, eu estou muito à frente da maioria. Tive a sorte de ter condições financeiras de poder tentar três vezes”, declarou.
Nascida em Peruíbe, Juliane teve como principais dificuldades uma mudança de cidade e a adaptação a um ensino um pouco mais forte. Ela teve condições de ficar três anos em um cursinho e se esforçar para alcançar sua tão sonhada aprovação no curso de Medicina.
“Meus pais também pagaram aulas particulares no último ano, foi bem caro, ficou apertado, mas foi importante. Eu tive uma família com condições e estrutura para financiar minha educação. Pouquíssimas pessoas têm essa chance”, destacou ela.
Apesar de ter vivido em uma realidade diferente, ela defende a política de cotas. “Só reduz a diferença, não iguala. Ainda há um abismo”, opinou.
Visão dos dois lados
Já Pedro Diniz, também de 21, viveu os dois lados da moeda. De mau aluno no ensino particular até a evasão escolar, o filho de um administrador rural e uma dona de casa só pegou gosto pelo estudo no pré-vestibular. “Fui reprovado por duas vezes em Jacareí. Primeiro foi em escola particular. Não gostava de estudar. Na segunda vez, passei em uma prova de reclassificação do Estado, mas arrumei um emprego em São Paulo e larguei os estudos”, contou.
Após um ano sem estudar, o jovem, que se mudou duas vezes de cidade, resolveu voltar às salas de aula. Como bolsista integral do Cursinho da Poli, prestará vestibular pela segunda vez, e tentará ingressar no curso de Agronomia. “Paguei um supletivo com meu salário. Depois entrei em um pré-vestibular. Dividia as mensalidades com meu pai. No primeiro ano, não tive sucesso. Agora vou conseguir. Tenho toda a estrutura necessária.”
FONTE: ESTADÃO CONTEÚDO
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