O “índio do buraco” era um indígena isolado, que vivia na terra indígena Tanaru, no sul de Rondônia
O presidente da Funai (Fundação Nacional do Índio), Marcelo Augusto Xavier da Silva, barrou o sepultamento do “índio Tanaru” -ou “índio do buraco”, como era mais conhecido- horas antes do momento previsto para o enterro, mesmo com a conclusão de todos os exames e coletas de material necessários para análise por peritos da Polícia Federal.
O “índio do buraco” era um indígena isolado, que vivia na terra indígena Tanaru, no sul de Rondônia. Ele optou pelo isolamento após seus familiares serem mortos por madeireiros na década de 1990. Segundo a Funai, o grupo tinha seis pessoas e existiu até 1995. O órgão passou a monitorá-lo, e a respeitar seu modo de vida, a partir de 1996.
O presidente da Funai decidiu contrariar os profissionais envolvidos no tratamento dado ao “índio Tanaru” após a morte e segurou o sepultamento do indígena, que deu mostras do lugar e da forma como gostaria de ser sepultado, conforme indícios deixados por ele no momento do óbito.
O corpo foi encontrado em 23 de agosto. Depois dos exames feitos por peritos da PF, o enterro estava previsto para o último dia 14, no mesmo lugar onde foi encontrado na terra indígena. Horas antes, na noite do dia 13, o presidente da Funai interveio e barrou o sepultamento. Desde o dia em que o corpo foi encontrado já se passaram, portanto, dois meses.
Todas as coletas de material e todos os exames periciais já foram realizados, não existindo razão técnica para a manutenção do corpo, conforme fontes a par da perícia da PF ouvidas pela reportagem. Os laudos podem ser elaborados sem a necessidade de novos exames, segundo essas fontes.
Xavier enviou um ofício à PF em Vilhena (RO) às 20h03 do dia 13. A cidade fica a 160 km de Corumbiara (RO), o município mais próximo da terra indígena. O documento surpreendeu os envolvidos no trabalho de preparação do sepultamento.
O presidente da Funai argumentou que os “laudos ainda não foram concluídos” e que existe uma necessidade de que “o referido corpo seja acolhido em ambiente propício, refrigerado, até que tais documentos sejam emitidos”.
Ainda segundo Xavier, é preciso haver um detalhamento de “protocolos fitossanitários hábeis ao seu sepultamento”. No ofício, ele pediu a acomodação “imediata” dos restos mortais do “índio Tanaru” no IML de Vilhena, até a conclusão dos laudos.
Os peritos envolvidos no trabalho não precisam mais de coleta de material ou de exames nos restos mortais do indígena, segundo fontes ouvidas pela reportagem. Análises sobre causas da morte e sobre pertencimento a grupo étnico já contam com material suficiente, conforme essas fontes.
Quando o corpo foi encontrado, a morte já havia ocorrido de 15 a 20 dias atrás, segundo técnicos que participaram das análises. Os restos mortais foram levados para o Instituto Nacional de Criminalística, da PF, em Brasília, e retornaram a Rondônia pouco mais de um mês depois.
Todas as ações envolveram uso de aeronaves, deslocamento de peritos e gastos para garantir as análises e o sepultamento do indígena.
O acerto com a Funai era que o sepultamento ocorreria no mesmo lugar onde o corpo foi encontrado. Esse acerto existiu do momento em que o corpo foi encontrado até a véspera do enterro.
O ofício de Xavier não especifica onde ocorrerá o enterro. A Funai não respondeu aos questionamentos da reportagem sobre as razões do ofício, sobre eventual alteração do plano do local do enterro e sobre o destino da terra indígena.
“A Funai aguarda os laudos para definir os melhores procedimentos quanto ao sepultamento do indígena Tanaru”, disse, em nota.
A suspeita de indigenistas é que, com o gesto, o presidente da Funai busca atender a interesses de fazendeiros que circundam a área protegida onde vivia o “índio do buraco”.
A terra indígena não é demarcada. Por haver incidência de um isolado, o território conta com uma restrição de uso, definida em portaria da própria Funai.
A portaria foi publicada em outubro de 2015 e tem validade de dez anos, até 2025. A morte do “índio Tanaru” pode levar o governo Jair Bolsonaro (PL) a rever a norma.
A prática do governo vem sendo segurar a edição de portarias de restrição de uso de territórios não demarcados, em atendimento a pedidos de fazendeiros e na direção do desejo de grileiros que circundam e que invadem essas áreas.
A edição de portarias do tipo vem ocorrendo por força de decisão judicial. Além disso, Bolsonaro zerou as demarcações de terras indígenas em seu mandato -é a primeira vez que isso ocorre desde a redemocratização.
Ao barrar o sepultamento do “índio Tanaru”, o presidente da Funai pode estar buscando facilitar a destinação da área, segundo indigenistas ouvidos pela reportagem.
No ofício à PF, por exemplo, ele não chama o lugar de terra indígena e diz que “o ‘índio do buraco’ habitava a área com restrição de uso ‘Tanaru’, no município de Corumbiara”.
Organizações indígenas acusam Xavier de deturpar as funções da Funai, de esvaziar o poder de fiscalização do órgão e de servir aos interesses de ruralistas.
Em julho, a Procuradoria da República no Amazonas denunciou Xavier à Justiça Federal por denunciação caluniosa, em razão da iniciativa do presidente da Funai de provocar a abertura de inquérito policial contra servidores do órgão e associações.
O presidente da Funai, que é delegado da Polícia Federal, sabia da inocência dos acusados, tinha ciência da “inexistência de qualquer ato ilegal” e imputou falsos crimes aos servidores, que agiram em defesa dos indígenas, conforme a denúncia do MPF.
No caso do impedimento do sepultamento do “índio Tanaru”, indigenistas e organizações indígenas entendem que o ato é um desrespeito à memória do indígena isolado. A Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) acionou o MPF no dia 17 para que Xavier seja investigado pela demora do enterro.
A PF já descartou que o indígena tenha morrido de forma violenta. Não há indícios de crime na morte.
O “índio Tanaru” foi encontrado de uma forma que remete a um ritual, como se ele tivesse se preparado para a morte, depois de décadas de isolamento.
FONTE: FOLHAPRESS
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