Indigenista que participou das expedições ao local de Rondônia onde vivia o último indígena de sua etnia relata receio de que sua morte desencadeie invasões nessa região da floresta, cobiçada por fazendeiros.
A notícia da morte do solitário indígena chamado de “índio do buraco” em Rondônia, o último de seu povo, foi mantida por alguns dias em segredo. O único sobrevivente de sua etnia, que segue desconhecida devido à recusa do indígena em fazer contato, vivia em uma área de uso restrito determinada pela Justiça que, agora, está sob o risco de ser invadida por fazendeiros que a cobiçam, alerta Ivaneide Bandeira Cardozo, indigenista que lidera a Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé desde 1992.
Ex-agente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Cardozo participou de expedições na década de 1990 ao local onde vivia o “índio do buraco”, também conhecido como “índio Tanaru”, para ajudar a identificar os limites da terra para sua proteção, e acompanhou as frustradas tentativas de contato feitas pelos servidores do órgão.
“A morte dele é um símbolo de que é preciso urgentemente a proteção desses povos indígenas, que o governo tome providências naquela região para garantir que os índios isolados também não desapareçam, não sejam mortos pelos invasores”, disse ela em entrevista à DW Brasil.
Segundo o o Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato a Frente de Proteção, a restrição de uso denominada Terra Indígena (TI) Tanaru foi estabelecida em 1997 e renovada sucessivamente por decisão judicial.
Como foi a identificação deste indígena e como ele era acompanhado?
Ivaneide Bandeira Cardozo: Desde a década de 1980, ele vinha sendo acompanhado pela frente dos isolados. Ele foi identificado pela Frente de Proteção Etnoambiental (FPE) da Funai.
Participei de algumas expedições na região quando a gente estava tentando, na década de 1990, no período do Planafloro [Plano Agropecuário e Florestal de Rondônia], demarcar aquela terra, interditar aquela região que abrigava indígenas isolados.
Ele era o único sobrevivente de vários massacres de povos indígenas na região. Foi uma luta muito grande para interditar a área – nem é demarcada, é só interditada. Ele nunca aceitou o contato. Talvez porque viu todo o seu povo ser massacrado, temia fazer contato com quem estava matando o povo dele.
Quando essa identificação aconteceu, ele já era o único sobrevivente?
Já era o único. A Funai tentou fazer contato e, uma vez, o indígena lançou uma flecha contra o funcionário. Ele não aceitava. Depois disso, foi pedida a interdição da área. Inicialmente, buscava-se uma área maior, o governo foi diminuindo e ficou desse tamanho atual. Ele foi monitorado todos esses anos com o intuito de protegê-lo.
No dia 23 de agosto, ele foi encontrado morto, deitado na rede dele, usando os paramentos dele. Essa informação estava sendo mantida em sigilo por conta do medo de invasões dos fazendeiros às terras. Eles invadem, desmatam tudo.
É um medo que a gente também tem, de que a notícia faça com que haja uma corrida para dentro da Terra Indígena, para acabarem com tudo. A gente defende que aquela terra seja mantida, que ele seja enterrado lá. É a terra dele, onde ele lutou e que lá continue para preservação da terra, das florestas. Há outros povos isolados ali por perto.
Como foram essas expedições das quais você participou?
Na década de 1990, participei já como fundadora da Kanindé. Tínhamos um convênio com a Funai no Planafloro para fazer levantamento de indígenas isolados. Pouco se sabia justamente pela ausência de contato.
Sabia-se dessa luta pela sobrevivência, dos buracos que ele fazia na terra para se esconder. A terra acabou cercada por grandes fazendas na região do rio Corumbiara.
Você tem viajado pelo mundo para divulgar o documentário O Território, que mostra a luta pela sobrevivência do povo indígena Uru-Eu-Wau-Wau e que já ganhou prêmios em festivais internacionais. Como tem sido a repercussão junto a esse público?
Está sendo muito importante. As pessoas que assistem vêm me abraçar depois, chorando. A repercussão está sendo maravilhosa, a reação está sendo surpreendente. Nunca achei que uma sessão cinema que exibisse documentário pudesse lotar, e isso está acontecendo. Os cinemas estão lotados para assistir ao nosso documentário.
Nosso objetivo é divulgar a luta dos povos indígenas no Brasil e no mundo. O que está acontecendo no Brasil com as comunidades, com os territórios, a necessidade de uma política que defenda os direitos humanos e o meio ambiente. Isso tudo se mistura à luta de outros povos contra esse governo. Todos os ativistas que morrem, eles dão um jeito de dizer que a morte não tem a ver com o meio ambiente, ou a terra. Dizem que a pessoa morreu por qualquer outra coisa, como acabaram de fazer com [o líder indígena] Ari [Uru-Eu-Wau-Wau].
[Ari Uru-Eu-Wau-Wau foi assassinado em 17 de abril de 2020 em um distrito de Jaru (RO) e o corpo foi encontrado na manhã seguinte. As investigações iniciais apontaram indícios de que o crime tinha ligação com suas denúncias sobre desmatamento e venda ilegal de madeira em em seu território. Recentemente, o inquérito da Polícia Federal concluiu que a morte “não tem ligação com crimes ambientais”, o que revoltou o povo Uru-Eu-Wau-Wau.]
O que vocês temem que aconteça depois da morte desse indígena solitário que vivia isolado?
Ele é um símbolo de resistência para nós. Rondônia tinha, quando ele estava vivo, oito povos isolados. Agora temos sete, que estão correndo o mesmo risco dele. Os isolados que vivem na região do Karipuna, na área do Parque Estadual Guajará Mirim, e os Uru-Eu-Wau-Wau estão sob intensa pressão de invasão de madeireiros, garimpeiros e grileiros.
A morte dele é um símbolo de que é preciso urgentemente a proteção desses povos indígenas, que o governo tome providências naquela região para garantir que os índios isolados também não desapareçam, não sejam mortos pelos invasores. Isso não está acontecendo só em Rondônia. Em toda a Amazônia, os indígenas estão sob intenso ataque.
FONTE: DEUTCHE WELLE
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