Vista como uma das melhores do mundo para a proteção à mulher, legislação já salvou milhares de vidas, mas muitas vítimas seguem sem receber atendimento adequado. Especialistas cobram melhorias na aplicação da lei.
Na tarde do dia 23 de dezembro de 2017, a psicóloga Luciana Santos procurava o controle remoto do portão de casa em seu guarda-roupas. Virou-se e viu o marido com um revólver apontado para ela. “Olha para mim, sou a mãe dos seus filhos”, disse em desespero. Em seguida, sentiu um tiro em seu pescoço. Alguns instantes depois, outras duas balas atingiram seus braços.
A pedido da filha, ela havia decidido passar um último final de ano junto do marido, antes de se separar definitivamente, após descobrir uma traição. Iria levar os dois filhos para passar o Natal com os avós maternos, como de costume, e voltaria dali a dois dias para passar o Ano Novo com a família do marido. Foi quando quase acabou morta por ele. “Não houve nenhuma discussão, eu tinha acabado de me despedir dele e falei que voltaria logo”, conta.
Em 17 anos de casamento, jamais havia sido agredida fisicamente, mas a violência psicológica começou logo nos primeiros anos junto do ex-marido. Sem saber que a Lei Maria da Penha abarca também esse tipo de violência, não chegou a denunciar. “Eu não entendia que aquilo também fazia parte, e além disso, como eu poderia provar?”, questiona Luciana, que hoje é psicóloga especializada no atendimento a mulheres vítimas de violência doméstica.
“Não cheguei a acionar porque eu não tinha conhecimento. E uma amiga me falou: ‘Você vivia um relacionamento abusivo, né?’ E eu pensei: ‘Claro que não, ele não me agredia”’, conta. Na visão dela, a lei em sua integridade é subdivulgada, e é comum as pessoas acharem que só vale em casos de agressão física.
“Hoje, uma das coisas que faço é a divulgação. Eu tenho um grupo no Facebook para vítimas de violência doméstica com 10 mil mulheres. Elas me perguntam: ‘Fui estuprada pelo meu marido, isso é crime?’ Elas não sabem.”
Uma das melhores leis do mundo
Ainda hoje, 15 anos após sua criação, a Lei Maria da Penha enfrenta seus desafios, seja pela falta de entendimento amplo da legislação ou por problemas na aplicação. Ainda assim, já salvou e salva muitas mulheres no país que registra um feminicídio a cada sete horas, de acordo com dados de 2019.
A legislação já foi considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) a terceira melhor de proteção à mulher do mundo, atrás apenas da espanhola, de 2004, e da chilena,de 2005. As outras duas preveem educação e conscientização nas escolas.
“É uma legislação muito boa porque é resultado de um consórcio de ONGs, de pesquisadoras, que, com muito estudo, muito debate, muita pesquisa, chegaram à redação legal específica depois de um longo processo estratégico e bastante amplo, pensando nas possibilidades”, diz a jurista Marina Ganzarolli, advogada especialista em direito da mulher e cofundadora do movimento MeToo Brasil.
Promulgada em 7 de agosto de 2006, a lei leva o nome da farmacêutica Maria da Penha, hoje com 76 anos, e se originou da luta para que seu agressor, o ex-marido Marco Antonio Heredia Viveros, fosse condenado. Em 1983, ele tentou matá-la duas vezes — ela ficou paraplégica por conta das agressões. Viveros foi julgado em 1991 e 1996, mas escapou da condenação. Somente em 2002, quando faltavam seis meses para a prescrição do crime, acabou condenado — cumpriu um terço da pena e foi solto em 2004.
Para a historiadora Maíra Rosin, pesquisadora na Universidade de São Paulo (USP), a Lei Maria da Penha precisa ser pensada dentro de um conjunto de conquistas dos direitos das mulheres no Brasil: “As mulheres brasileiras só adquiriram direitos políticos em 1932, a lei do divórcio é dos anos 1970, e até então as mulheres dependiam dos maridos para absolutamente tudo, eram quase corpos sem nenhum direito”, aponta.
“A Lei Maria da Penha é um grande ganho na política do que é ser mulher no Brasil, ainda mais sabendo que vivemos em um país bastante machista, com um regime patriarcal que ainda vigora, uma coisa muito violenta contra a mulher”, afirma a historiadora.
Milhares de vidas poupadas
Com a lei, passou a haver maior discussão sobre a violência contra a mulher no país, aumentaram “timidamente” as notificações e foram encorajadas denúncias, apesar de ainda se estimar que elas não passem de 10% a 20 % dos casos efetivos de violências de gênero, de acordo com a psicóloga Simone Mainieri Paulon, professora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). “Isso tem efeitos diretos no combate a tais violências, impactando, inclusive, na sua forma extrema, que é o feminicídio.”
Uma pesquisa publicada em 2015 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) indicou que a lei promoveu uma diminuição de 10% na taxa de homicídios contra mulheres praticados dentro das residências. “Para além da longa e necessária mudança cultural e prevenção de novos casos de violência, tais resultados permitem dizer que a Lei Maria da Penha já foi responsável por poupar a vida de milhares de brasileiras que teriam sido assassinadas no mesmo período”, avalia Paulon.
Para a arquiteta Dayane Viola, a Maria da Penha fez a diferença entre a vida e a morte. Em um domingo de novembro de 2020, ela pôs fim a um namoro de dez meses, motivada pelo comportamento agressivo do então companheiro, que já havia desferido socos em uma ocasião. Dois dias depois, foi chamada pelo ex-namorado para levar um remédio à sua casa — os dois moravam no mesmo edifício. Foi quando apanhou ininterruptamente dele, um lutador de artes marciais. Teve lesões nos braços, nas cordas vocais, nas pernas e no rosto. “Ele tentou me matar”, conta.
Entre as agressões, no entanto, conseguiu chamar a polícia e enviar a localização pelo telefone celular. No mesmo dia, o ex-namorado foi detido. Em seguida, obteve uma medida protetiva — que saiu antes de o agressor ser solto em audiência de custódia. Há um inquérito a respeito do caso.
“Se não existisse a Lei Maria da Penha, a minha palavra não seria ouvida”, diz. “Hoje ele é obrigado a dizer onde está, não pode se ausentar mais de dez dias da cidade, é uma pessoa monitorada. Então, para ele fazer algo contra mim, fica muito difícil. Todas as vezes que ele tentou violar a medida protetiva, a Polícia Militar foi efetiva. E isso se deve à Lei Maria da Penha.”
Desafios na aplicação
Estudiosa de vários casos de violência contra a mulher no Brasil, sobretudo no século 19 e início do século 20, a historiadora Rosin argumenta que o maior gargalo para a legislação está nos mecanismos de cumprimento da norma.
“Muitas mulheres não denunciam porque têm medo, sofrem reprimendas de familiares. E muitas delegacias não estão preparadas para receber esse tipo de denúncia, às vezes considerando quase um mimimi, algo que não seria sério”, afirma.
O que poderia avançar, na avaliação da pesquisadora, são os mecanismos para que as mulheres tenham segurança na denúncia, além de maior efetividade nas medidas protetivas e acolhimento psicológico nas delegacias.
“O machismo acaba aparecendo no delegado, no promotor, no juiz, em todo aquele que aceita a legítima defesa da honra como argumento jurídico”, diz Rosin. “Historicamente, o que observamos é a recorrência da mulher que acaba culpada pela própria violência que sofreu.”
Embora a legislação preveja a criação de varas híbridas entre justiça da família e justiça criminal — já que para a vítima, ambos os aspectos estão misturados e não faz muito sentido tratá-los separadamente — até hoje apenas um estado da federação, o Mato Grosso do Sul, conta com essa estrutura.
A jornalista Mariana Basílio é um exemplo de quem teve dificuldades para resolver seu caso, mesmo com a lei em vigor. Ela sofreu agressões verbais e físicas do ex-companheiro por anos, até que tomou a decisão de se separar. Após uma tentativa mal-sucedida dele para reatar o relacionamento, veio a agressão física derradeira. “Nunca apanhei tanto na vida”, diz, com a voz embargada. “Ele falava que ia me matar, se eu não voltasse pra ele. Foi o pior momento da minha vida.”
Conseguiu correr para o banheiro, se trancar e chamar ajuda. “Quando falei que ia ligar para a polícia, ele fugiu.” O agressor levou o carro da vítima e colocou fotos dela em sites de prostituição. Ficou três dias ausente, até que retornou. Nesse ínterim, no dia 13 de dezembro de 2014, ela foi a uma Delegacia da Mulher relatar o caso. E se deparou com um atendimento que não esperava receber.
“Quando comecei a contar, o policial olhou pra mim e falou: mas você nunca foi prostituta? Ele fez tudo para me desencorajar. E falou: ‘Se você tem filho não vai separar mesmo, já vi essa história’. E eu chorava copiosamente dentro da delegacia. E aí um segundo policial que viu o que estava acontecendo pegou o meu caso. E eu sou muito grata a esse homem, que ficou três horas me ouvindo, me encaminhou para uma ONG para ter apoio psicológico, para que eu pudesse me reerguer”, relata Mariana.
A medida protetiva, no entanto, levaria ainda mais de um mês para sair, e foi violada diversas vezes pelo ex-companheiro. “Ele descobria onde eu estava morando, onde eu estava trabalhando. Em uma noite, no centro do Rio [de Janeiro], ele me seguiu pela calçada. Eu só apressei o passo”, conta.
Neste ano, a vítima de violência foi a filha de 16 anos de Mariana, que passou a ser perseguida pelo ex-namorado. Ele também publicou fotos íntimas da adolescente em redes sociais. Mas, desta vez, a história que se seguiu foi diferente. A medida protetiva saiu no dia seguinte à ida à delegacia, e tanto a filha quanto Mariana — que também foi ameaçada pelo agressor — são acompanhadas de perto pela Patrulha Maria da Penha, de âmbito estadual.
Criado em 2019 pela Secretaria de Estado da Polícia Militar do Rio de Janeiro, o projeto é uma parceria com o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro para prestar atendimento especializado às vítimas de violência doméstica. Um dos objetivos é fiscalizar e acompanhar as vítimas para que as medidas protetivas sejam efetivas. “Ao menos uma vez por semana eles nos mandam mensagem por WhatsApp”, diz Mariana.
“Talvez o maior desafio hoje para a integral aplicação da Lei Maria da Penha seja garantir sua capilaridade, ou seja, fazê-la realidade para as mulheres de todos os cantos do país”, aponta Bueno, do Fórum de Segurança Pública. Isso porque os equipamentos públicos, principalmente os especializados, como delegacias da mulher e varas, ainda estão concentrados nas grandes cidades.
Outras legislações
Após a Maria da Penha, outras leis relativas a violência contra mulheres foram aprovadas. Em 2012, entrou em vigor a Lei Carolina Dieckmann, que protege contra vazamento de fotos e outros dados íntimos sem consentimento. Três anos mais tarde, surgiu a Lei Joanna Maranhão, que aumenta o prazo de prescrição em casos de abuso de menores, e a do feminicídio.
Em julho deste ano foi sancionada a Lei 14.188, que inclui no Código Penal o crime de violência psicológica contra a mulher a todo aquele que causar dano emocional “que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento” ou que vise a “degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões”.
Entretanto, para Ganzaroli, se a Lei Maria da Penha fosse aplicada em sua integralidade, não haveria necessidade de discutir a inclusão de mais tipos penais.
“A Maria da Penha é uma lei que não cria crimes, é uma lei que fala de proteção, é integral, é multidisciplinar: fala de saúde, assistência social, medida protetiva, educação e também de justiça criminal. Por isso é tão boa”, avalia. “Sabemos que o encarceramento não resolve o problema da violência contra as mulheres. Nenhum homem agressor sai com a masculinidade retrabalhada do cárcere.”
FONTE: DEUTCHE WELLE
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