Em menos de três anos, 11% da terra indígena Ituna-Itatá foram desmatados. Quase todo o território que deveria ser protegido é sobreposto por registros feitos no Cadastro Ambiental Rural.
Terra indígena (TI) mais desmatada da Amazônia em 2019, a Ituna-Itatá concentra este ano mais de 600 focos de calor detectados pelo satélite S-NPP, monitorado pelo Inpe. Mais da metade desses focos foram registrados na primeira quinzena de outubro, em um processo de ocupação que envolve ainda esquemas de grilagem, criação e “lavagem” de gado.
O território por onde o fogo avança vivencia uma investida sem precedentes de invasores não indígenas que pressionam toda a região do Médio Xingu, no Pará, afetando também outras terras indígenas nas proximidades, como as TIs Trincheira Bacajá, Cachoeira Seca e Apyterewa. Diferentemente desses outros territórios, a Ituna-Itatá abriga indígenas isolados, sobre os quais pouco se sabe, mas cuja presença foi descrita em dois pareceres técnicos da Fundação Nacional do Índio (Funai).
A Ituna-Itatá é uma terra indígena de 1.420 km² em fase de estudo e com restrição de uso, estágio que impede o ingresso e a permanência de pessoas sem autorização da Funai. No entanto, 94% dessa terra pública foi recentemente registrada no Cadastro Ambiental Rural (CAR) em nome de “proprietários” autodeclarados, segundo um levantamento realizado pelo Greenpeace.
O trânsito de forasteiros e a crescente pressão sobre o território faz com que esse grupo de indígenas precise se deslocar, afastando-se dos conflitos e também do contato.
“Os indígenas da região do Xingu, de vez em quando, trazem notícias sobre os grupos isolados que habitam a área. Em 2012, 2014, os relatos indicavam que estavam mais ao norte. Em 2016, os Asurini e os Araweté começam a relatar vestígios frequentes desses isolados um pouco mais ao sul da terra indígena. Esse conhecimento indígena sobre as dinâmicas territoriais desses grupos deve pautar as ações de monitoramento e fiscalização do Estado brasileiro”, considera Angela Kaxuyana, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).
Delimitada em portaria de 2011, como condicionante da hidrelétrica de Belo Monte, a TI fica localizada entre os municípios de Altamira, que teve um acréscimo substancial da população desde o início das obras da barragem, e Senador José Porfírio, que pode ser impactado pela instalação da maior mina de exploração de ouro a céu aberto da América Latina, empreendimento da empresa canadense Belo Sun.
O processo de ocupação da Ituna-Itatá por não indígenas começou a avançar em 2014, ainda no governo Dilma Rousseff. A partir de 2016, ano do início da operação de Belo Monte e do governo Michel Temer, avançaram os registros do CAR dentro da TI e também os índices de desmatamento.
“A pressão ali aumentou com o término das obras de Belo Monte, acho que por dois motivos: primeiro, pela disponibilidade de mão de obra oriunda do período de construção da usina; e segundo, porque os empresários da região, que estavam lucrando com atividades ligadas à obra, também acabaram ficando sem essa renda, voltando seus investimentos para atividades ilegais”, avalia um ex-servidor público que atuou na região e prefere não ser identificado.
Ocupação acelerada
Desde 2018, o Observatório De Olho no Xingu, da Rede Xingu +, monitora o desmatamento na Ituna-Itatá pelo sistema Sirad X. Entre janeiro de 2018 e setembro de 2020, foram detectados mais de 150 km² desmatados. Em menos de três anos, o desmatamento atingiu cerca de 11% do território.
Pelos dados do Prodes/Inpe, o desmatamento na TI se intensificou em 2017/2018 e explodiu em 2019, já no governo Jair Bolsonaro, apresentando um aumento de mais de 750%, em relação ao ano anterior. O período viu o desparecimento de 120 km² de cobertura florestal.
Com a realização de operações do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), as taxas de desmatamento caíram no início deste ano, chegando a quase zero, em alguns meses. Agora, entre agosto e setembro, foi possível identificar pelo sistema Sirad X novos pontos de desmatamento, ainda pequenos. Mas, como a tendência de retirada de floresta na TI costuma crescer no final do ano – foi assim em 2018 e 2019 -, o reaparecimento de áreas desmatadas serve de alerta.
“Está havendo novos desmatamentos na região. Tem a abertura ainda de pequenas áreas, bem em um ramal que sai de um terreno na Ituna-Itatá e entra na terra indígena vizinha, a Koatinemo. No ano passado, a gente divulgou a abertura desse ramal, e, agora, estou vendo na imagem que os novos desmatamentos estão beirando esse ramal”, relata Thaise Rodrigues, analista de geoprocessamento do Observatório De Olho no Xingu. Além da TI Koatinemo, as pressões na Ituna-Itatá avançam também sobre a Trincheira Bacajá.
Evolução do desmatamento em região dentro da TI Ituna-Itatá
“Estão ocorrendo queimadas na Ituna-Itatá, tanto em propriedades que já haviam sido desmatadas há mais de um ano, acredito que para fazer uma limpeza do terreno, quanto em áreas que foram desmatadas no início do ano, acredito que para consolidar [a ocupação], porque são áreas em que ainda tinha sobrado muita vegetação, e agora, na imagem de setembro, eu estou vendo que colocaram fogo”, explica a analista da Rede Xingu+.
Queimadas e desmatamento dentro da Ituna-Itatá estão a reboque principalmente da especulação pela posse da terra e da invasão de atividades como a pecuária. Os pontos atuais de fogo na terra dos indígenas isolados muitas vezes coincidem com áreas desmatadas.
“Tem uma guerra ali pela regularização daqueles lotes, daquelas áreas invadidas. Como é autodeclaratório, a gente vê sobreposição de CAR, uma briga de facções que fazem vários cadastros, disputando aquele território”, diz o ex-servidor público.
O Cadastro Ambiental Rural (CAR) é um registro eletrônico da situação ambiental de imóveis rurais no país. Criado no âmbito do novo Código Florestal, em 2012, deveria servir para a regularização ambiental dessas propriedades, mas, pelo seu caráter autodeclaratório, por vezes é usado como instrumento para tentar validar a ocupação irregular de terras públicas.
Um levantamento feito pela Procuradoria-Geral da República (PGR), divulgado em junho, identificou quase 10 mil registros no CAR sobrepostos a terras indígenas em diferentes fases de regularização ou com restrição de uso, em todo o país. O estado com mais casos do tipo é o Pará, com 2.325 registros, sendo 1.290 “propriedades” em TIs em processo de regularização e 1.035 em TIs com restrição de uso.
Na Ituna-Itatá, até outubro, foram feitos 229 cadastros sobrepostos aos seus limites. Desses registros no CAR, 35,8% correspondem a áreas acima de mil hectares, o que indica que mais de um terço das sobreposições de terra são feitas por grandes proprietários e grileiros interessados na especulação de grandes terrenos, e não por pequenos posseiros.
A Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas) cancelou cadastros ambientais rurais sobrepostos à Terra Indígena Apyterewa recentemente. Questionado sobre a possibilidade de cancelamento de cadastros na Ituna-Itatá, Rodolpho Bastos, secretário adjunto de regularidade ambiental da Semas, informou que as ações de análise do CAR em TIs feitas pelo órgão são voltadas para terras indígenas regularizadas, o que não incluiria a Ituna-Itatá, ainda em fase de estudo. Bastos ressaltou que o CAR é um instrumento de regularização ambiental, e que a regularização fundiária de terras indígenas caberia à Funai e ao governo federal.
Pecuária abre caminho
O ciclo da grilagem na Ituna-Itatá se completa com a compra ou arrendamento de terra ocupada e desmatada para fazer pasto e criar gado. Em artigo publicado em junho deste ano, analistas ambientais que atuaram na região pelo Ibama citam que foram encontradas cerca de 2 mil cabeças de gado dentro da terra indígena.
“O rebanho é comercializado por meio de guias de trânsito animal falsas ou enganosas, uma vez que é proibido aos frigoríficos adquirirem animais criados em áreas não autorizadas, o que inclui as áreas protegidas. As falsas declarações de origem do rebanho não oferecem garantias sobre o devido controle sanitário, o que, além de contribuir para o desmatamento, pode colocar em risco a saúde da população”, explicam os autores do artigo, entre os quais está Hugo Loss, ex-coordenador de operações de fiscalização do Ibama exonerado após realizar megaoperação contra crimes ambientais na região.
Para o Greenpeace, trata-se de prática de “lavagem de gado”. A ONG, em parceria com a Repórter Brasil, identificou “propriedades” na Ituna-Itatá registradas no CAR em nome de pessoas que vendem gado para outros pecuaristas que, por sua vez, comercializam os animais com grandes frigoríficos, como a Marfrig Global Foods, a Frigol e a JBS.
Em fevereiro, Edward Luz, conhecido como o “antropólogo dos ruralistas”, tentou impedir uma ação de retirada de gado realizada pelo Ibama na Ituna-Itatá. Ele dizia, em um vídeo-selfie, que estava fazendo cumprir ordem do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, para que nenhum patrimônio da população fosse destruído. Luz acabou detido, mas foi solto horas depois.
Segundo o presidente da Associação dos Produtores Rurais e Agroindustrial do Vale do Bacajaí (Asprub), Pedro Ferreira do Nascimento, conhecido como Pedro Pintado, a Ituna-Itatá passou por cima de parte da Gleba Bacajaí, de propriedade do estado do Pará. Ele alega que a Asprub defende os produtores rurais que estavam na gleba antes de 2011, mas condena a presença de invasores posteriores à criação da TI.
“Tem parte da intenção da ‘reserva’ que os órgãos federais e os órgãos estaduais erraram e muito. Mas, em 80% da intenção de reserva, os órgãos federais fizeram a coisa certa, e quem tá lá dentro cometendo crimes, tá errado. Por isso que eu fui em Brasília pedir pra tirar 20%, recuar um pouco pra salvar pessoas que tinham direito lá dentro, o que ia evitar o esbulho que tá acontecendo agora”, defende Pedro Pintado.
Há ações de políticos e ruralistas que questionam a própria existência da Ituna-Itatá. Em projeto de decreto legislativo de março deste ano, o senador Zequinha Marinho (PSC-PA), que já foi vice-governador do Pará, tenta sustar portarias que restringem ingresso, locomoção e permanência de pessoas estranhas aos quadros da Funai na área da TI. No texto do projeto, o senador alega que “não há tribos isoladas na região” e que “sequer há um povo indígena ali habitando”. A matéria está na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal.
O InfoAmazonia questionou a Funai sobre o que tem sido feito pela Fundação para garantir a restrição de uso da Ituna-Itatá e proteger os indígenas isolados que lá estão. Em nota, o órgão informou que tem feito ações de proteção territorial na área em articulação com o Ibama, a Polícia Federal, o Centro Gestor e Operacional Ituna-Itatá do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam) e a Secretaria de Segurança Pública do Pará. A nota diz ainda que a Funai está planejando uma série de expedições terrestres e sobrevoos no local, a fim de avançar na etapa de localização geográfica referente ao registro de povo indígena isolado na área.
Ao Ministério da Defesa, perguntamos por que não houve atuação preventiva da Operação Verde Brasil para evitar as queimadas na Terra Indígena Ituna-Itatá, considerando que, pelo ciclo do desmatamento, retiradas da floresta, como a registrada ano passado, costumam ser seguidas pelo fogo; e se haveria equipes da Operação atuando na TI para conter os focos de incêndio. Não houve resposta.
Esta reportagem faz parte do Amazônia Sufocada, projeto especial do InfoAmazonia com o apoio do Rainforest Journalism Fund/Pulitzer Center.
FONTE: DETCHE WELLER
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