Líderes dos ianomâmis decidiram impedir entrada e saída, a não ser para buscar atendimento médico; coronavírus começou a se alastrar nesta população
As lideranças de 2,1 mil índios ianomâmi no Alto Rio Negro, na fronteira com a Venezuela, bem que tentaram, mas o destino foi inevitável: o novo coronavírus se espalhou pelas comunidades, adoeceu homens e mulheres e matou dois indígenas. A propagação segue a velocidade constatada em centros urbanos, pequenos e grandes.
As lideranças decidiram fechar as aldeias. A regra é que ninguém entra e ninguém sai, a não ser para buscar atendimento médico. O vírus, porém, já circula entre os ianomâmi do lado do Amazonas. Apenas 60 testes foram feitos; 18 deram positivo para Covid-19.
A grande maioria dos 23 mil índios ianomâmi, que vivem na maior terra indígena brasileira, está em Roraima – são 21 mil naquele estado. Pouco mais de 2 mil estão no Amazonas, no extremo noroeste do estado, uma região chamada “Cabeça do Cachorro” – no mapa, o desenho do local lembra a imagem da cabeça do animal.
Para chegar ali, por água (a via para transporte mais comum na região), são necessários três dias num barco entre Manaus e São Gabriel da Cachoeira – a distância é de 1,2 mil quilômetros pelo rio – e mais um dia pelo Rio Negro para chegar aos ianomâmi. O novo coronavírus fechou e isolou tudo, mudando a realidade.
São Gabriel, a cidade mais indígena do Brasil (90% dos moradores são indígenas), está em lockdown, decretado pela prefeitura da cidade; o único voo existente até Manaus e as barcas estão proibidos; o trânsito entre a cidade e as aldeias, onde estão indígenas de 23 aldeias, está vetado. Uma fiscalização do Exército barra a passagem de moradores das comunidades que insistem em ultrapassar os bloqueios em cima de canoas.
A reportagem da ÉPOCA conseguiu chegar ao território ianomâmi na “Cabeça do Cachorro” ao embarcar em voos da Força Aérea Brasileira (FAB) que transportaram equipamentos de proteção individual e equipes militares à região, a convite do Ministério da Defesa. O lugar é um dos mais impactados pela Covid-19, mesmo estando em isolamento e a distâncias colossais de grandes centros urbanos como Manaus.
Em Maturacá, onde estão os ianomâmi, na fronteira com a Venezuela, o Estado se faz presente com um polo de um Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI), do Ministério da Saúde, e com um pelotão de fronteira do Exército. A realidade, porém, é de abandono.
O polo do DSEI só improvisou quatro enfermarias para atender indígenas infectados pelo novo coronavírus por iniciativa da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN). O pelotão, por sua vez, só se abre a atendimentos aos ianomâmi quando equipes médicas são enviadas por Brasília, o que é raro. Ainda assim, apenas os indígenas que vivem próximos ao pelotão conseguem se deslocar até a área militar.
Moradores de cinco comunidades ianomâmi no entorno do pelotão – este núcleo mais central tem cerca de 600 índios – começaram a aparecer na área militar no último domingo quando souberam que uma equipe médica foi enviada ao local, o que não ocorria há tempos. Carmelita, de 70 anos, chegou desidratada, na companhia de uma parente, com sintomas “claríssimos” para Covid-19, nas palavras da equipe que a atendeu improvisadamente na sala de musculação dos militares.
Com tosse, falta de ar e calafrio, a suspeita de infecção pelo novo coronavírus foi reforçada em razão do convívio da indígena com seu marido. Ele tem Covid-19.
“Ele precisa de mim”, repetia a mulher, enquanto recebia soro na veia.
A indígena, então, foi levada numa maca ao polo do DSEI em Maturacá, para ficar internada na enfermaria improvisada no local. Não foram aplicados nem o teste rápido, pelo fato de os sintomas serem recentes (o teste rápido detecta anticorpos no sangue), nem o chamado PCR-RT, que faz uma análise molecular em laboratório – não existia, naquele momento, esse teste mais seguro e sofisticado.
Os ianomâmi seguem no escuro, sem testagem por parte da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, a quem estão vinculados os DSEIS. Apenas casos com sintomatologia muito evidente são submetidos a testes. Foram apenas 60 até agora, com resultado positivo para 30% deles.
Testes rápidos foram enviados à região, mas em quantidade insuficiente. Mais uma vez, coube à organização dos indígenas providenciar medidas de socorro às comunidades. A FOIRN, a partir de campanhas de doação, comprou 4 mil kits de testes rápidos, para serem distribuídos às aldeias na Cabeça do Cachorro e também em São Gabriel da Cachoeira.
O vírus está circulando em todas as cinco comunidades dos ianomâmi na região, segundo equipes envolvidas nos atendimentos e segundo os próprios índios. Duas mil máscaras foram distribuídas aos indígenas, mas poucos fazem uso no dia a dia nas aldeias. “Ianomâmi é forte, não pega”, costumam repetir. Apesar disso, o medo está instalado na região, que fica aos pés do Pico da Neblina, o ponto mais alto do Brasil.
As notícias de mortes de indígenas ianomâmi por Covid-19 são dadas pelas próprias pessoas que procuraram ajuda médica no domingo no pelotão de fronteira. A agente de saúde Marilda de Souza, de 36 anos, tem três filhos e buscou ajuda. Segundo ela, quatro casos foram confirmados em sua comunidade, onde vivem 200 ianomâmi. Ela relatou a ocorrência de duas mortes, confirmadas pelo GLOBO.
“A gente não permite que estranhos entrem. Mesmo assim, essa doença chegou. A gente toma remédio caseiro, como saracura e folha de boldo”, diz.
Os ianomâmi e demais etnias da Cabeça do Cachorro já precisam conviver com a malária, uma doença endêmica na região. Há relatos de que muitos estão infectados e lidando com malária e Covid-19.
A impossibilidade de deslocamento a São Gabriel da Cachoeira, para onde muitos viajam para sacar o Bolsa Família e comprar comida, agravou o estado de pobreza nas comunidades. Eles são produtores de farinha e outros produtos, mas parte dos indígenas se vê dependente de cestas básicas distribuídas pelo poder público ou por organizações que os representam.
“As pessoas estão ficando doentes, com febre, dor de cabeça, sem conseguir engolir. Ficou tudo mal mesmo, e sem melhoras”, diz o tuxaua (termo usado para designar uma liderança na tribo) Henrique Mendonça, 52.
O tuxaua Ângelo Barcelos, 55, afirma que a Covid-19 chegou em meio à malária. O vírus paralisou tudo e deixou indígenas doentes. Da comunidade que ele lidera, dez foram levados às enfermarias improvisadas no polo do DSEI. Se a situação se agrava, o destino é o Hospital de Guarnição em São Gabriel, por via aérea. A necessidade de uma UTI obriga um novo deslocamento, até Manaus.
Ângelo conta que rituais para enterro de indígenas foram alterados diante das obrigações sanitárias decorrentes da nova realidade:
“Para o que ‘apagou’ na sexta-feira, mandaram preparar o caixão e trouxeram. Foi enterrado no mesmo dia. Normalmente, quando alguém está doente, ficamos ao lado o tempo todo. Se morre, as pessoas ficam pelo menos dois dias dentro de casa chorando.”
Os números, porém, podem estar subestimados. Um levantamento da FOIRN aponta 1,8 mil casos confirmados e 21 mortes nas comunidades indígenas no Alto Rio Negro e em São Gabriel da Cachoeira.
*Enviado especial a São Gabriel da Cachoeira (AM)
(repórter viajou a convite do Ministério da Defesa)
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